Voz da Póvoa
 
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Personagens e lugares da minha rua

Personagens e lugares da minha rua

Cultura | 13 Janeiro 2024

 

Antes da auto-estrada A28 a Estrada Nacional 13 era a principal entrada na Póvoa de Varzim para quem vinha de Norte, fosse da distante Valença ou da freguesia vizinha de Averomar. 

O troço da N13 entre a entrada no perímetro da freguesia da Póvoa de Varzim e o cruzamento com a Avenida Mouzinho de Albuquerque foi baptizado em 1905 como Rua Gomes de Amorim, em homenagem ao poeta averomarense Francisco Gomes de Amorim.

Hoje é uma rua infraestruturada com equipamentos, prédios residenciais e estabelecimentos comerciais, há menos de 60 anos era uma estrada nacional, calcetada a paralelepípedos de granito, atravessando um território em transição da ruralidade ainda vincada para uma urbanização que começava a despontar. 

As casas não tinham números de polícia, os telefones apenas com três algarismos precisavam de uma telefonista na central para estabelecer as ligações manualmente, os carteiros conheciam de cor cada um dos residentes. Os aparelhos de televisão uma novidade de luxo.

Foi aqui que nasci. São desta rua as primeiras memórias. 
Conto com benevolência quanto a erros e imprecisões em que involuntariamente posso ter incorrido na construção da narrativa que se segue.

A fita do tempo

O dia começava de madrugada ainda noite cerrada, com as carroças de Averomar, Aguçadoura e Navais, a percorrerem a Estrada Nacional 13/Rua Gomes de Amorim a caminho do mercado carregadas de pencas, cebolas, cenouras, batatas e o mais que fosse do tempo.
 
As ferraduras e as grandes rodas revestidas de ferro a pisar os paralelipípedos sacudiam mesmo os sonos mais pesados.
 
Pela mesma hora Dona Aida enxotava porta fora os últimos clientes da sua muito frequentada casa de tolerância.

À força de várias exposições e abaixo-assinados da vizinhança defensora da moralidade pública, dos bons costumes e da tranquilidade, aquele “antro de pecado” viria a ser encerrado pelas autoridades de nada valendo, o especial relacionamento que se dizia existir entre a madame Aida e o chefe da polícia.

Com o dia a despontar, chegavam as leiteiras carregando cântaros de alumínio cheios de leite ainda morno ordenhado havia pouco no Rosmaninho ou no Zé de Poço ali ao lado do Liceu, sempre em alerta não fosse aparecer o implacável fiscal “corporativa”.
Depois vinha a padeira porta a porta a encher os sacos de pano com as encomendas de pão trigo, e broa.

Pontualmente às sete e meia da manhã todas as quintas feiras descia do primeiro andar da casa de alugada no lado poente da rua, um alto funcionário de uma câmara municipal próxima da Póvoa. Discreto encaminhava-se com passos seguros para o seu Ford Taunus 12 M de lux estacionado nas imediações enquanto uma esbelta figura feminina adivinhada por trás da cortina do quarto lançava o último olhar de despedida. Regressaria na próxima quarta-feira à noite. Até lá desfrutava do aconchego do lar onde residia com a mulher e a numerosa prole.

A essa hora, no piso térreo da mesma casa, já a inquilina Srª. Joaquina andava de volta do pequeno tear fazendo mantas com os trapos que recolhia. Dedicava-se ainda a trabalhos de modista. Foi aqui com ela que deu os primeiros passos no ramo a neta, hoje afamada designer e empresária de moda, Ana Sousa senhora de uma cadeia de lojas espalhadas pelo mundo.

Em frente à Basílica do Coração de Jesus o intenso letreiro luminoso “Quintas & Quintas – Cordoarias Texteis S.A.R.L” anunciava as instalações da que foi a maior e mais importante empresa poveira. A fábrica laborava 24 horas/24 horas para transformar sisal em cordas de todos os calibres e extensões. Pouco antes das oito horas a rua inundava-se de operários em mudança de turno e de grandes camiões que traziam desde Leixões os pesados fardos daquela fibra vegetal embarcados de Moçambique.

Onde está hoje a BP existia um posto de abastecimento de combustíveis da marca, já extinta, Mobil cujo logotipo era um cavalo alado a levantar voo. Ao lado mesmo em frente da basílica do Coração de Jesus funcionava uma tasca sombria de portas vermelhas entreabertas e paredes meias com a oficina de reparação, aluguer e venda de bicicletas da mãe do João Branco. Mais tarde transferida para um anexo ao Zé das Letras, onde o João Branco manteve a porta aberta até ao fim dos seus dias. 

Diariamente às oito horas um numeroso rebanho de ovelhas saía da casa do Sr. Paulino no lado norte da Basílica do Coração de Jesus, para pastar nos campos atrás do Liceu onde nos anos setenta viria a ser construída a icónica residência da família Santos projectada por Álvaro Siza Vieira e mais recentemente a Biblioteca Municipal Rocha Peixoto com projecto da autoria do poveiro por adopção arquitecto Silva Garcia.

Continuando pela Rua Gomes de Amorim na direcção norte, havia do lado nascente um terreno que se estendia até ao “Zé das Letras”. No tempo em que aguardava a concretização do seu destino construtivo foi transformado em estacionamento de carroças e animais enquanto os proprietários atacavam naquele estabelecimento, a preços módicos, as famosas postas de bacalhau frito, regadas a malgas de vinho tinto de Barcelos. (CONTINUA)

João Sousa Lima

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