Voz da Póvoa
 
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Os Verdes Anos da Rádio Tinham Uma Menina

Os Verdes Anos da Rádio Tinham Uma Menina

Cultura | 25 Novembro 2020

Depois, não muito tempo, vieram os aceleras que animavam as noites antes das corridas de Vila do Conde. No dia da prova os repórteres cercavam a pista e, da curva do Castelo, da curva do Praia Azul, do ‘S’ ao lado do Parque ou da recta da Seca do Bacalhau, relatavam as emoções provocadas pelos heróis do volante, de tal forma e importância, que a direcção da corrida sintonizava os 98.6 da Rádio Foz do Ave. Os meios de transmissão eram feitos com uma coisa parecida com um walkie talkie, com o peso da sua antiguidade. O som era equilibrado em estúdio por um técnico super desenrascado e as audiências eram maiores que um relato da bola.

A Rádio Foz do Ave abriu pirata, licenciou-se, viveu um longo tempo de glória e, tal como outras tantas, calou-se no éter, mas ainda se ouve no coração da saudade. “Foi quase por brincadeira. O Elísio Ribeiro, que fazia uns programas, convidou-me a visitar a rádio. Dizia que eu tinha uma boa voz e devia experimentar fazer umas gravações. O Elísio adorava passar música, mas não gostava de gravar notícias e pediu-me para o fazer. Na altura, comprava-se muitos jornais, selecionava-se as notícias, compunha-se o noticiário e gravava-se numa cassete. Estávamos nos últimos tempos da pirataria na Rádio Foz do Ave. Quando foi atribuído o alvará, abriram um concurso para novas vozes. Fiz um teste e assinei o meu primeiro contrato efectivo de trabalho, ainda estava a estudar no Porto, no Centro de Formação de Jornalistas (CFJ). Tínhamos os mesmos professores que fizeram a formação para a TSF. Naquela altura, não foi preciso fazer um estágio porque eu já trabalhava em Rádio”, recorda a jornalista, Fernanda Maria Gomes de Araújo.

 Nasceu em Matosinhos em 1967, mas ainda na idade de interrogar, veio viver para a Poça da Barca. Por umas décimas não entrou em Medicina. Depois, o convite para fazer rádio tomou conta do coração e somou quase três décadas a informar e a animar outros corações, primeiro na Rádio Foz do Ave, depois na Esposende Rádio.

Dar voz a um programa de música era o desejo da maioria dos novos animadores de rádio, mas Fernanda Araújo revela que foi sempre a informação que a fascinou: “As notícias, a política, as entrevistas, eram a minha grande paixão. O certo é que, embora nunca tenha deixado de fazer informação, fui parar aos Discos Pedidos, e passei a ser conhecida pela ‘Menina da Rádio’. Eu não gostava, mas era por ali que entrava dinheiro, além de que os patrocinadores exigiam que fosse a minha voz a apresentar o programa e levei quase três décadas a fazer Discos Pedidos”.

A rádio foi sempre uma companhia de todas as horas, mas há programas como os Discos Pedidos que escondem no silêncio muita solidão: “Entrava na casa das pessoas, via rádio, todos os dias. Fui muitas vezes, ao telefone, confidente de situações de vida muito difíceis, de muita solidão, de perda, de tragédia, de violência doméstica, de ficar perplexa com os relatos emocionados das pessoas e não saber o que fazer. Partilhavam a vida com maridos alcoólicos, violentos, mas tinham vergonha e viviam no medo de denunciar. Enquanto não colocava a chamada no ar, cheguei quase a obrigar as pessoas a ligarem para a linha de apoio à vítima, porque não tinham que revelar o nome. Mas, temos que escolher as palavras que vamos dizer, sentimo-nos quase na obrigação de dar conforto e não é fácil, depois, desligar o telefone ou prender a linha e colocar o ouvinte no ar. De seguida, faziam a dedicatória aos amigos e desconhecidos, como se a dor se apagasse ali. Ouvir-se na rádio, ouvir o ouvinte dedicar-lhe um disco, era para muita gente uma espécie de suporte de vida, um secar de lágrimas”.

No entanto, Fernanda Araújo reconhece o quanto ganhou na partilha de afectos: “Tive e tenho ouvintes que os sinto da minha família. Aprendi a ser uma pessoa muito melhor com tudo o que me deram e, não sabem sequer quanto. Essas confidências, essas desgraças de vida ensinaram-me que há sempre alguém a precisar de nós. Isso obriga-nos a ser mais fortes e a desempenhar um papel de ombro amigo. Depois acabamos por criar uma imagem que esperam de nós. Se és uma pessoa que conforta, que dá o ombro, que está disponível, não podes ser uma coisa diferente e isso, obrigou-me a gerir a própria vida de uma maneira sempre solidária. Em vez de me tornar uma pessoa amarga, sisuda, de mal com a vida e com os outros, estas pessoas ajudaram-me a fazer o contrário, ser mais humana. Devo isso aos meus ouvintes com quem estive tantos anos e que tantas saudades me deixaram”.

Houve outras alegrias que a rádio ofereceu: “fiz imensas entrevistas. Quase todos os artistas passaram pela rádio. O Tony Carreira, o José Malhoa, o José Alberto Reis, ninguém lançava um disco sem passar na rádio para uma conversa, e tive muitas. Depois a rádio exige uma constante adaptação, não só para quem veio da bobine, da cassete de enrolar com o dedo para acertar o som, do gira discos, do CD e agora os computadores, é preciso saber lidar com um público dos 8 aos 80, isso obriga a uma renovação constante. Em rádio ninguém se deixa envelhecer, quando acompanhamos os tempos, a juventude persiste. Fiz de tudo em rádio, até tardes desportivas, só não fiz relatos de futebol”.

Fernanda Araújo recorda como aconteceu a mudança para a Esposende Rádio: “Fui convidada pelo Paulo Reis que era o director, para fazer as manhãs. A oferta era boa, mas recusei-me a deixar Vila do Conde. Ele insistiu com uma proposta melhor e acabei por aceitar. Fui fazer o lugar do Carlos Pereira e nunca é fácil ocupar o lugar de uma pessoa que era uma referência em Esposende. Criam-se hábitos, mas tive que partir ao encontro das pessoas e conquistá-las. Quando fiz 25 anos de rádio perguntaram-me se me imaginava a fazer outra coisa. Respondi que se isso acontecesse ficaria amputada da alma da minha vida, e fiquei”.
Não saber dizer não. Desta vez no desporto. “Sempre tive uma paixão enorme pelo vóleibol. Tenho cinco amigas excepcionais do tempo do vóleibol que pratiquei no Desportivo da Póvoa. Agora, estou nas Masters do Ginásio Vilacondense. Não foi precioso muito para me convencer, não sou de pensar muito. Estou inscrita como atleta, tenho muito caminho pela frente. Para já, vamos treinando, porque não há ainda campeonato, só em Janeiro se tudo correr bem. Sou a mais velha da equipa, mas penso que estarei em forma para participar e ajudar nos jogos quando começar o campeonato”.

A rádio e o vóleibol são para Fernanda Araújo paixões de uma vida. “Quem volta ao vóleibol 30 anos depois, mais depressa volta à rádio. No Desportivo da Póvoa, o treinador cubano Mário Fernández marcou a minha vida e de todas as colegas. Foi ele que fez renascer o vóleibol no Desportivo. Quanto à rádio, em tempos tive um convite da TSF/Porto e a minha opção foi sempre ficar pelas rádios locais. Mais recentemente, recebi um convite para uma rádio de Lisboa, mas nesta altura da minha vida, a opção é a família. Não me arrependo. Não fechei a porta a nada. Estou ligada de outra forma. Tenho dado voz a algumas campanhas publicitárias, gravações de vídeos ou na apresentação de espectáculos. Voltar à rádio teria que ser uma coisa séria, não está em causa o projecto, pode até ser voltar a fazer discos pedidos, mas não muito longe das Caxinas”.

Por: José Peixoto

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