Voz da Póvoa
 
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Os Dias Intimistas do Cine-Teatro Garrett

Os Dias Intimistas do Cine-Teatro Garrett

Cultura | 2 Junho 2020

O palco dos sonhos onde tantas realidades aconteceram, não fosse o velhinho Theatro Garrett inaugurado em 1890, é hoje um centro de cultura viva. Um século depois, mais precisamente em 1998, o edifício foi adquirido pela Câmara Municipal, que ao fazê-lo renascer da ruina, a 14 de Junho de 2014, era já Cine-Teatro Garrett e o nome ficou. Para as gentes da cidade que, do piolho ao camarote ou da plateia ao primeiro balcão, foram público na viagem das artes, foi sempre o Garrett.

Como se fosse a correr, os últimos seis anos encheram o palco principal e os outros de actividades quase diárias, onde o teatro, o cinema, a dança e uma mão cheia de espectáculos onde a música diz presente, se interrompeu pelo medo do invisível.

Quebrada a normalidade, seguidas as recomendações da Direcção-Geral da Saúde (DGS), o Cine-Teatro Garrett encerrou ao público e a equipa dividiu-se, por casa, em teletrabalho e no interior da solidão dos palcos.

Quisemos saber os passos que acabarão por encontrar no tempo a reabertura, mas também como se vive num espaço que se alimenta de público. Por isso, fomos conversar com a directora do Gabinete de Projetos Culturais do Cine-Teatro Garrett, Manuela Ribeiro. “O teatro só fechou ao público depois de uma actividade com as escolas e um concerto com a Ana Bacalhau. No dia 1 de Março, um domingo, tivemos a primeira reunião com o vereador da Cultura Luís Diamantino, onde ficou decidido que quem tinha estado directamente em contacto com o escritor Luís Sepúlveda e com a mulher, entraria de quarentena. Fomos 20 pessoas, eu incluída. Uma semana depois, como a maioria das pessoas regressei normalmente. Depois, umas ficaram a trabalhar e outras, de forma intercalada, meteram folgas por gozar por causa do Correntes d’Escritas e das actividades normais do teatro. Seguiu-se a sugestão do teletrabalho em equipas e semanas desfasadas. Quando se instalou o Estado de Emergência, eu e outra colega ficamos em teletrabalho permanente por causa dos nossos problemas de saúde”.

Os espectáculos em agenda para Março e Abril foram todos cancelados: “Foi uma decisão da autarquia. Com o alastrar da pandemia, começamos a perceber que em Março não haveria espectáculos e Abril seguia o mesmo caminho. A maioria dos espectáculos de Março era com escolas e estavam programadas representações teatrais de ‘Os Maias’, de Eça de Queiroz e ‘O Memorial do Convento’ de José Saramago. Tínhamos espectáculos infantis com escolas do primeiro ciclo e jardim-de-infância. O Varazim Teatro também tinha uma série de espectáculos para as escolas. Pelo meio entre outros o concerto ‘Soam as Guitarras’ foram cancelados e adiados. As pessoas podem pedir a devolução do dinheiro ou manter o bilhete para a próxima data ainda por agendar. Há pessoas que perderam o emprego ou rendimentos e precisam reavaliar as suas vidas. O teatro estava cheio de actividades. Entre programação própria, cinema, escolas, academias de dança e espectáculos de associações, tínhamos o teatro cheio de actividades até ao final do ano. Havia semanas com um dia de folga e dias com mais que um espectáculo. Agora, temos que perceber de que forma será a retoma”.

O público chega com tudo organizado, mas por vezes desconhece toda a logística que está por trás de um espectáculo explica Manuela Ribeiro: “Há montagens de luz, som e cenários, preparar os camarins, a frente de sala, que é a bilheteira, o átrio e as próprias salas, mas também as entradas e acompanhamento de algumas pessoas aos lugares. Temos alturas em que há diferentes espectáculos em diferentes espaços do teatro. Nós chegamos a ocupar a Sala de Ensaios, o Sub palco, a Sala de Actos ou o Café Concerto e o Palco Principal com espectáculos em sequência. Num mesmo período de tempo todos estes espaços são utilizados. Isso implica uma logística enorme, em que uma equipa pequena tem que apoiar-se para que tudo aconteça. Tem que haver uma coordenação e um trabalho de produção muito bem pensada, que para além de executar tem que ser definida. É um trabalho de bastidores que ninguém vê”.

Começa a haver sinais de alívio e reagendar espectáculos pode vir a caminho: “Neste momento estamos a reagendar tendo em conta as agendas dos próprios artistas, que viram todos os seus espectáculos serem cancelados por outras salas. Tudo isto é muito recente e há muitos receios ainda, por isso não queremos definir já uma data, antes de percebermos como tudo isto vai evoluir. A retoma, a abertura. Hoje já não sabemos sequer o que é normalidade”.

Para Manuela Ribeiro é ainda desconhecida a reacção das pessoas quando as portas dos teatros se abrirem: “Os espectáculos são espaços de convívio. Raramente as pessoas vêm ver um espectáculo sozinhas. As pessoas vêm ver e conviver, estar com os amigos no espectáculo. A nova normalidade pode obrigar a distâncias entre amigos, namorados, casais. Tudo isto são questões que tem que ser reavaliadas e o próprio governo não tem ainda um plano ou normas para apresentar. Vivemos num tempo sem tempo. Para nos habituarmos temos que perceber que tempo é este. Os únicos que perceberam e tiveram que lidar com isto sem preparação foram os médicos e os enfermeiros, o pessoal de saúde, não tiveram tempo para pensar, apenas tentar proteger-se e mesmo assim não conseguiram. Nós estamos a ter um tempo para lidar com isto. E quero crer que tudo isto vai implicar uma enorme responsabilidade por parte das pessoas, mas há pessoas que não estão preparadas para essa responsabilidade. Há pessoas que nem sequer perceberam o que isto é”.

E acrescenta: “O que podemos fazer é estar em articulação com outras entidades. Isto vai ser mais difícil do que aquilo que as pessoas estão à espera. Remarcar duas vezes o mesmo espectáculo e reagendar tudo também se torna um pouco confrangedor. Acho que é melhor manter a esperança de que vamos abrir, e quando o fizermos ter algumas certezas. No caso do Cine-Teatro Garrett acho que vamos ter que recomeçar. Nós voltamos a 2014, com a diferença de já termos uma experiência. Agora já não é tudo novo, nem abrir e descobrir”.

Manuela Ribeiro, que acumula também a organização do Correntes d’Escritas, olha as duas últimas perdas do evento literário: “O Rubem Fonseca e o Luís Sepúlveda deixaram-nos os livros para conversar. Também perdi o meu pai, penso muitas vezes e pergunto outras tantas, porque é que foi ele, mesmo sabendo assim será para todos. Quando parte alguém de quem gostamos, vai um bocadinho de nós e vamos enchendo o coração de vazios. Até que um dia, o coração se enche de tal forma que fica vazio e também partimos”.

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