Voz da Póvoa
 
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OS DIAS DE MAIO

OS DIAS DE MAIO

Cultura | 30 Abril 2023

 

    No maio como as cerejas pelos teus lábios, diz o homem do saco de cabedal à rapariga. E a rapariga abandona o largo, correndo, como quem foge da tempestade. O homem espanta-se, olha-a a perder-se na paisagem. Pouco depois, regressam a rapariga, os irmãos e o pai, expeditos, afoitados,
            Foi ele!, voz de fogo, voz de honra maculada.  
   Forma-se o cerco, cai o homem por terra, derrubado como uma árvore viçosa, sangue vivo pinta-lhe os lábios. A rapariga, os irmãos (são três) e o pai assim delegam o desconhecido. E partem. Leves, libertos, ressarcidos de antiquíssima pureza. Os melros, alheios aos humores da humanidade, soltam os seus cânticos ao desafio, pressentindo a noite. Mas os dias de maio parecem infinitos. Lentamente, o homem se levanta. Sacode as roupas, limpa a dor, em gestos suaves. Do bolso direito das calças, apanha um lenço: devagar, rasura o sangue dos lábios. Do outro bolso, sai um cigarro: fuma-o, sozinho. Debruça-se, a dor acompanha-o, levanta o saco de cabedal: caminha, movimento magoado, em direção do nada. Antes de sair do largo (ou da página?), volta-se para mim (silencioso cronista), avisa-me: O narrador protege a personagem, foste tu o estopim do desacato!
    O homem do saco suspende a marcha: enxuga ainda a boca, como se a quisesse corrigir. Eu sei, espera uma palavra minha. É verdade, por outras aventuras andámos e ninguém, em lugar algum, o desassossegou. Parado, aguarda. Merece, sem dúvida, uma palavra de conforto, e eu não a encontro. Que terá dito a rapariga à família de ódios silenciosos? Que alvoroço ancestral a espavoriu como a animal silvestre? Dos lábios da personagem fugiu apenas uma humilde metáfora, erro meu, erro meu, doce e rubra como fruta da época.

Francisco Duarte Mangas

   

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