
Ninguém sabe ao certo quando uma primeira vez aconteceu Teatro, creio que teríamos que recuar ao próprio evoluir do Ser. Talvez as primeiras representações tenham começado por imitações dos movimentos do corpo, das expressões e até da interrogação dos primeiros sonhos. A certeza que temos é que nunca mais paramos de representar, tal como a vida que vivemos e que se oferece inspirada ao narrador.
Um certo dia de 1997, Eduardo Faria com um grupo de amadores fundou a Varazim Teatro – Associação Cultural, sendo o seu presidente de direcção desde essa data e seu director artístico. A profissionalização gerou a Companhia Certa e o Festival Internacional de Teatro É-Aqui-In-Ócio que na sua 16ª edição teve como tema “Paisagens Divergentes Numa Mesma humanidade”.
Quisemos saber como surgiu a ideia de criar um Festival de Teatro numa cidade pouco habituada a este tipo de criações: “Quando fizemos dez anos como ponto de celebração decidimos fazer o É-Aqui-In-Ócio. As pessoas não têm noção, mas desde muito cedo a Varazim Teatro, mesmo tendo uma estrutura de amadores desempenhava um trabalho, um papel, que na minha opinião não deveria ser de amadores, mas de profissionais, por isso, pensamos sempre na profissionalização. Para sermos sérios e justos não podemos estar a trabalhar a meio tempo ou nos tempos livres porque aquilo que nos é pedido, que nós nos propomos a fazer, exige uma entrega, um empenho e um conhecimento mais aprofundado. Como trabalhámos muito pró bono durante dez anos, conseguimos juntar algum dinheiro na associação, e para nós só tinha sentido ser investido em teatro, aquele dinheiro era do teatro. Então para celebrar os dez anos, resolvemos fazer o É-Aqui-In-Ócio, chamámos na altura a edição zero porque não sabíamos se teríamos possibilidades de o repetir, não tivemos nenhum apoio extra. Foi uma coisa feita com o nosso dinheiro, e ao mesmo tempo tínhamos a ideia de criar um evento que fizesse a transição das actividades de verão ao ar livre para a sala, por isso, foi uma edição com muitos espectáculos de rua e no interior. Na nascença o festival foi pensado para diversos espaços e para diversos públicos”.
Quando é que o Festival passou a ter uma temática associada? “Nós éramos amadores e passámos a profissionais, tivemos um processo que é como a revolução, nunca está acabado, porque a intenção é alargarmos os nossos quadros. Já tivemos mais gente a trabalhar a tempo inteiro na Varazim Teatro, e o princípio foi – quem viesse deveria trabalhar de maneira que fossem criadas condições para a seguir entrar outra pessoa. Foi assim que fomos crescendo e nos profissionalizando, e hoje o nosso trabalho é todo profissional, não só as pessoas que cá estão, mas também aquelas que nós contratamos ao longo do ano. Curiosamente, chegamos ao final do ano e temos qualquer coisa como 40 contratos de trabalho com profissionais diferentes. E isto fez-nos andar sempre a correr atrás da sobrevivência, da subsistência, da continuidade”.
A ajuda menos esperada veio em 2020 com a obrigação do dever geral de recolhimento domiciliário: “Não tínhamos muito tempo para estruturar, pensar, reflectir e foi a pandemia que nos fez parar e nos deu tempo para pensar, para reflectir. Na verdade nunca parámos. Parámos de ter actividade como tínhamos, mas passámos a ter tempo para estudar mais, para conhecer mais. Em relação ao É-Aqui-In-Ócio fizemos uma reflexão e concluímos que continuar a ter um evento que, era uma soma de espectáculos, era mais do mesmo, não fazia sentido. Perante isso chegámos a duas conclusões: para continuarmos, o festival teria que adquirir uma característica que o justificasse e que poderia ser no sentido do próprio teatro, tornar-se um encontro para fazedores de teatro, o que era válido e faz falta. As pessoas encontrarem-se, reflectirem em comum, conversarem, debaterem, partilharem. Ou então, na direcção do público – acabámos por ir na direcção do público, e oferecer-lhe alguma mais-valia. Aquilo que surgiu foi a ideia de criar uma temática que albergasse todo o evento e que de alguma maneira aportasse a possibilidade de reflexão para quem assiste ao Festival. Assim veio a temática, e as mesas de reflexão, uma coisa que não havia antes, e continuamos a procurar explorar mais esta vertente”.
O Festival tem uma Temática que não o Afasta do Teatro
Num momento em que a sociedade se afasta, por manipulação ou não, do uso do pensamento, da urgência de reflectir, este virar de página do É-Aqui-In-Ócio para a reflexão não poderia implicar o risco da perda de público, o desinteresse? “Na altura, não fiz essa reflexão e também não a tenho agora. Isto porque vivemos tempos muito próprios. A seguir à pandemia, a nível geral em Portugal e se calhar em todo o mundo, o que houve foi um crescendo de público. As pessoas estiveram cerca de dois anos impedidas de conviver uma grande parte do tempo, de poderem fruir de eventos culturais. A sensação que dá é que as pessoas ficaram com fome, e quando o mundo se abriu novamente, as pessoas procuraram saciar-se e tivemos um aumento de público nos anos seguintes. Em relação à edição deste ano, pudemos reflectir sobre isso, temos ainda que estudar outros factores, os inquéritos todos que fizemos no final de cada espectáculo, mas já percebemos que esta edição teve menos público que as edições passadas e não foi por falta de qualidade dos espectáculos”.
Para Eduardo Faria a temática ia pela saúde mental adentro: “Tivemos que recolher muita informação e sabemos que a temática erroneamente fez com que algumas pessoas não viessem. Eu não sei se era pesada, algumas pessoas que conhecemos são médicos e cuidadores informais e não vieram. Penso que apesar da temática, estamos a falar de teatro, ou seja, ao contrário daquelas pessoas que vieram e perceberam que havendo a temática o que viram foi teatro, e teatro bom, de qualidade, com histórias muito interessantes ligadas à temática. E nem podemos falar de falta de diversidade porque de facto se houve alguma coisa marcante no festival foi a sua diversidade, mas há pessoas que acham que dentro de uma temática só podemos pensar numa só coisa ou fazer de uma só maneira. Imaginem o que seria fazer um festival de teatro sobre Shakespeare, a diversidade nunca ficaria em causa e iria inevitavelmente ser diverso, até pela forma de abordar uma mesma obra”.
E acrescenta: “Há outros factores muito importantes e se calhar até tiveram mais peso, pensamos que sim. Houve futebol quase todos os dias, alguns no tempo certo, outros em atraso e até jogos de competições europeias ao longo das duas semanas de festival, isto falando de equipas grandes. E um outro factor foi o facto de estarmos em campanha eleitoral, teve impacto não só no público, mas também na divulgação. Tivemos órgãos de informação nacionais e regionais que nos disseram que estavam essencialmente voltados para a cobertura das campanhas eleitorais. Por isso, não considero que o factor temático do festival tivesse afastado público”.
Por outro lado “a questão da temática, em relação a este ano, também nos fez perceber que houve muita gente que veio só pela temática. Se por um lado perdemos alguma franja de público que estamos habituados a ter, também é verdade que ganhámos outra que, sendo menor, veio grande parte de fora da Póvoa. Penso que esta edição foi aquela que teve uma maior percentagem do seu público de fora da Póvoa de Varzim. Nós sabemos que chegámos a concelhos e que atraímos público de lugares que nunca nos passaria pela cabeça. Mas, este Festival acentuou ainda mais esse vir de fora. Ainda em relação a esta questão da temática se teria afastado público, se assim tivesse sido, justifica mais do que nunca um Festival que vai à procura de questões que sejam de alguma maneira fraturantes em relação ao marasmo, e que provoquem a reflexão. E se as pessoas que assistiram sentiram isso, já estamos a ganhar”.
Seria sempre mais fácil seguir os caminhos da normalidade
Se recorrermos a algumas peças que o Varazim apresentou e representou ao longo dos anos, muitas delas já tocavam, e de que maneira, assuntos perturbadores como a eutanásia. O Varazim sempre teve uma atenção especial pelos temas actuais, mais propriamente os fraturantes. Não diria banalidade porque acho que isso não existe no teatro. Até para representar a normalidade há grandes actores: “Sempre foi uma das nossas características e continua a ser, faz parte do nosso ADN, e se por vezes temos que ir para essa padronização, a tal normalidade, é por uma questão de imposição, umas vezes custa muito, outras não custa assim tanto, mas tem a ver com as políticas culturais do país. Ou seja, nós para nos candidatarmos e temos neste momento o apoio da DGArtes, há certas coisas que não são propriamente a favor da democracia e da liberdade de decidir, há umas balizas que nos vão guiando até uma majoração. Há umas certas majorações que nos levam a situações até caricatas. Há alguns anos atrás havia uma majoração que implicava uma candidatura para quem tivesse nos elencos afrodescendentes, e houve alguém que disse – isto é a caça ao ‘pretinho’ que é para podermos ter mais pontos na candidatura. Eu não acho que seja assim que a democracia aconteça. A democracia acontece na reflexão, no encontro, na partilha e não na condução dos caminhos”.
E recordou uma passagem recente relacionada com a campanha eleitoral na Póvoa de Varzim: “Houve uma tendência quase generalizada de colar a cultura ao turismo. A cultura tem um impacto no turismo, mas é um impacto com um efeito colateral. A cultura não pode ser usada para dinamizar o turismo, se não, estamos a contrariar aquilo que é a Constituição – a liberdade de pensamento, a liberdade de criação. E vamos todos criar coisas a pensar não em comunicar, não em partilhar, mas em arranjar clientes para os hotéis e isso não é necessário. Não tenho guardado na cabeça quantas dormidas, ao longo do ano, nós promovemos na Póvoa de Varzim ou quantas refeições nos restaurantes só com a nossa actividade, e inerentemente a isso se há gente que vem de fora para ver uma peça, dorme nos hotéis da cidade e come. No mínimo vão jantar, tomar um café, tomar uma bebida, isto é uma consequência da actividade teatral. O resto é instrumentalização e a instrumentalização da cultura à partida deveria estar proibida por lei, mas as pessoas por vezes esquecem disso. Sei que não fazem por mal, a ideia que está por trás é boa, mas é necessário alertarmos porque facilmente caímos numa armadilha, e as coisas desvirtuam-se e passam a ser uma outra coisa que não cultura desejada”.
A companhia tem cada vez mais viagens ao exterior, a outras zonas do país, ao estrangeiro. Há um passado e um esforço qualitativo na representação a requalificar o convite. A ideia passa por chegar cada vez mais a novos públicos? “É sem dúvida fruto do trabalho desenvolvido ao longo dos anos e dos dias que vivemos. Somos profissionais e três de nós trabalham a tempo inteiro com dedicação à Varazim Teatro, sempre a pensar no crescimento da infraestrutura. Obviamente que os apoios são fundamentais e por vários motivos. Primeiro porque nos dão meios e segundo porque nos reconhecem, nos atribuem algum mérito. Ninguém dá nada a ninguém apenas pelos lindos olhos que tem, é tudo fruto do trabalho, das nossas propostas, e no caso da DGArtes, deixamos de ser apoiados apenas para fazer o Festival, e passamos a ser apoiados para toda a nossa actividade ao longo do ano durante dois anos. Para o ano temos que nos voltar a candidatar e é fundamental para isso termos um reconhecimento local, e o reconhecimento local que eles medem é com base naquilo que é a relação que temos com a autarquia, o seu apoio é fundamental, mesmo não sendo o mais preponderante. Na verdade, se juntarmos o apoio da DGArtes e da Câmara Municipal, se juntarmos os apoios todos, geramos uma receita quase em dobro, e isso faz-nos ser reconhecidos e abre-nos portas. Passámos do local ao regional e agora assumimos um estatuto nacional. Sendo nacional, também chegamos ao internacional. Este ano ainda temos algumas saídas, entre elas em Dezembro, temos uma saída para Valência em Espanha. Ou seja, tem aumentado o número de representações fora de Portugal. Para o ano, temos a aspiração de sair da Península Ibérica”.
Eduardo Faria diz não ser “gabarola nem um falso modesto, mas a Varazim Teatro é provavelmente a Associação cultural com mais actividade na Póvoa de Varzim. Ao longo de todo o ano, temos a nível nacional, fora da Póvoa de Varzim, umas 30 ou 40 representações, e no estrangeiro, este ano, perto de uma dezena de representações. Recordo que dentro da cidade não fazemos só espectáculos no Garrett, também fazemos vários para as escolas. Nalguns os alunos vão ao Garrett, outros são nas escolas e isto dá um número acima das três dezenas de apresentações só na Póvoa de Varzim”.
Vem aí “Partitura da Guerra” Palavreada com Música
Há um espectáculo que sobe ao palco nos dias 7 e 8 de Novembro, alguma informação foi libertada e aprisionada outra. Há um texto de Valter Hugo Mãe e um piano nas mãos de Raúl da Costa: “Esta ideia não é uma coisa de agora, acontece que o Valter é uma pessoa com uma actividade ligada à literatura muito intensa, é muito solicitado e não é fácil estar disponível. Começámos esta ideia há cerca de dois anos, mas para podermos embarcar num projecto desta dimensão só fazia sentido se tivéssemos meios para isso. Os apoios também não surgiram no tempo certo, as coisas foram sendo adiadas. A ideia passava pela liberdade, por falar da guerra como sendo algo que retira, que aniquila, que anula o conceito seja ela qual for a liberdade, a não ser para alguns, a liberdade de matar. Passaram os tempos, fomos adaptando e veio esta questão da saúde mental. Se há uma coisa que inevitavelmente tem impacto na saúde mental das pessoas, é viver num ambiente de guerra. A nossa intenção era que este espectáculo tivesse estreia ainda antes do É-Aqui-In-Ócio. Tivemos algumas conversas e neste espaço-tempo o Valter propôs-se criar um texto que será desenvolvido entre um concerto de piano e uma peça de teatro. Foi o Valter que sugeriu o nome do Raúl. Contactei o Raúl para saber a disponibilidade e para grande surpresa e muita satisfação minha, o Raúl abraçou desde logo a ideia e o projecto. O Raúl vive em Berlim e andámos durante um período de tempo, por vezes até com alguma ansiedade a tentar encontrar a forma de conjugarmos as disponibilidades para concretizar as vontades”.
A Varazim Teatro acabou por ser incubadora da Companhia Certa? “É uma marca da Varazim Teatro. Continuamos a ter muito orgulho em descender de uma estrutura de amadores. Então para marcarmos o trabalho profissional da Varazim Teatro no campo da criação, criámos a marca de Companhia Certa. Assim, os programadores, os produtores, toda a gente sabe que o que aparece com a marca Companhia Certa é o lado profissional da Varazim Teatro”.
Em relação à campanha eleitoral para a autarquia Eduardo Faria lamenta certas visões partidárias: “Agora já posso dizer isto à vontade. Por incrível que pareça só tivemos uma candidatura à Câmara da Póvoa de Varzim a querer e a vir falar connosco. Isto é algo que também valerá a pena reflectir porque nenhuma das outras associações pode representar aquilo que nós representamos. Somos a única estrutura apoiada em toda a sua actividade pela DGArtes, acho que temos uma característica que merecia, pelo menos, tal como os outros, ser ouvidos, para depois poderem ir para debates e dizerem coisas mais assertivas e não se ficarem apenas pelos clichés”.
Por: José Peixoto
Fotos: Rui Sousa