Voz da Póvoa
 
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O Espelho de Eva ou a Desconstrução do Imaginário

O Espelho de Eva ou a Desconstrução do Imaginário

Cultura | 17 Junho 2021

Nascemos quase sempre em protesto, aos gritos e em choro. Não sei se desconfiados do pecado, do fruto proibido, trincado, mordido. Gosto de maçãs, do feminino de Eva, da sua tentação. 
“A serpente, Espelho de Eva” ou o paraíso desconstruído pela fé dos homens, umbilicalmente ligados ao sémen da criação. A linguagem da interpretação faz o caminho do pensamento livre, inspirado. Tão respirado, quanto a sua vontade de visitar a exposição.

 Afonso Manuel Pinhão Ferreira nasceu em Condeixa-a-Nova, em 1957. Três meses depois, vivia em Vila do Conde, onde fez os estudos primários. O estudante seguiu aprendendo no Liceu da Póvoa de Varzim até entrar na Faculdade de Medicina da Universidade do Porto. No segundo ano, inscreveu-se em Medicina Dentária, licenciatura que viria a concluir. Em 1989, tornou-se no primeiro médico dentista a exercer exclusivamente ortodontia no nosso país. Submeteu-se a provas de doutoramento em ortodontia em 1997, e é fácil perceber, que por sequência de uma carreira académica exemplar, em 2003 foi nomeado professor catedrático. É membro do movimento Rotary desde 1989 e Presidente da Assembleia Municipal da Póvoa de Varzim desde 2013.
 
Para além de exercer ortodontia em exclusividade na Ortopóvoa Lda., clínica privada criada em 1991, ainda retira ao silêncio do tempo a obra de um artista. A arte na sua plenitude não deixa de dar respostas à inquietação: “Sempre tomei decisões diferentes do que é habitual. Nunca me acomodei. Era um miúdo e já diziam que desenhava bem, mas tive péssimos professores de educação visual. Olho para trás e só encontro esta resposta. É com muita alegria que estou a ter esta conversa na Filantrópica, porque nos anos 80 recebi um convite do presidente do Conselho de Administração, Luís Alberto, para pertencer aos órgãos sociais, como presidente da Assembleia Geral. Era eu um jovem dentista e assistente na Faculdade. Nessa altura, havia aqui umas aulas de desenho e pintura, por isso, decidi frequentar algumas. Desenvolvi algumas técnicas, noções de perspectiva, quanto às cores, eu misturava-as quase intuitivamente. Depois, tive uma espécie de autoeducação. Como sou professor universitário, tenho que procurar conhecimento. Fiz o mesmo na pintura e na escultura. Hoje, tenho aqui uma exposição, numa Filantrópica reconstruida”.

E acrescenta: “Quanto à questão da inquietude, considero que a arte é de facto a suprema manifestação humana. Ou seja, nenhum animal irracional faz arte. Depois, com a experimentação, a idealização de uma peça de arte é talvez o momento mais livre que o ser humano pode ter. O filósofo Delfim Sardo, escreveu um livro fantástico ‘o exercício experimental da liberdade’ que é a arte. Na realidade, nunca me sinto tão livre como quando estou sozinho a pintar ou a esculpir. Traz realmente essa sensação louca de liberdade. É um pensamento transformado na realidade e isso é fantástico”.

A escultura pode ser a vontade de retirar da tela o objecto, dando-lhe forma, outra vida, mas para Afonso Pinhão Ferreira, particularmente, esta exposição não explica a escultura: “Estou a fazer o busto do meu filho e isso é uma representação, não quer dizer que não seja uma forma de expressão e, ter também ali na sua execução, critérios de arte, de inovação. Eu gosto particularmente desta exposição porque é temática, mas também criativa. Aqui, tentei desconstruir o imaginário. O Ser Humano ao longo da sua história política, da sua história social, sempre esteve ligado à religião, que por si, sempre teve um forte peso no individuo, às vezes desgraçadamente, outras positivamente. E nesta exposição ‘A Serpente, Espelho de Eva’ tentei demonstrar o percurso que a mulher teve ao longo da história social do homem. Na realidade, a mulher sofreu mais do que devia. Na Idade Média, as pessoas viviam no mundo do medo. A religião tinha um poder tremendo e criou a noção de pecado. Recorde-se que para pedir perdão, pagava-se à igreja, ou se fizesse qualquer coisa contra os seus mandamentos, aquela para mostrar o seu poder, torturava ou matava”.
 
O artista questiona os factos, mas também o imaginário: “Eu pretendi mostrar que, a dado passo a tentação da mulher perante o homem, fazendo aquilo que Deus não queria - o fruto proibido - era um pecado. Creio que, a mulher tentar o homem não é um pecado, até considero uma coisa fisiológica. O quadro que tem a mulher na cama com a cobra, que fiz há alguns anos, demonstra exactamente isso. A tentação não é um pecado, mas é um poder e, portanto, a mulher é identificada como a tentadora, a pecadora. Porém, a partir de certa altura os pintores, os escultores, não sei se manietados pelo Clero, representaram a mulher como o próprio demónio, uma coisa terrível. Aquele painel que ali está, mostra a Eva dos dois lados, o Espelho de Eva, mas num lado tem o corpo da cobra. Ou seja, passou a ser o próprio demónio. Não admira, por isso, o rol de atrocidades que se cometeram. O Clero sempre foi masculino e tinha o dom, o privilégio de Deus só falar com ele. Mas, porque diabo, Deus só falava com o Clero e com mais ninguém? Estes pensamentos, leituras e estudos sobre o conceito de pecado, teses de doutoramento, resultaram na construção desta exposição, que revive a Idade Média, mas entra também no renascimento.

O Homem Borboleta ou a Metamorfose da Serpente  

A construção do nascimento humano, desde o acto de procriar até à carne, é uma metamorfose. Consequentemente, o mundo é uma metamorfose diária, a arte de transformar: “O homem borboleta significa a metamorfose. Deixa de ser medroso, de viver de forma tão atroz e passa a ter uma vida mais criativa, mais artística e cultural. Passa a apreciar e a contemplar de outra forma e, portanto, sofreu uma metamorfose. Na arte, a metamorfose tem um nome, chama-se intelectualização e assume-se em várias vertentes, mas nem toda a gente consegue representar bem. Às vezes, é preciso uma grande capacidade técnica para o fazer, mas não gosto de classificar outros como melhores ou piores artistas, não entro nesse fanatismo. A arte para ser verdadeira, tem que ser sentida. A sua mais importante metamorfose aconteceu há dois séculos, com a intelectualização da arte. Ou seja, hoje, a arte transmite também um tempo. Pode inclusivamente ser um veículo de informação ou de contestação. Isto é, à intelectualização da arte seguiu-se a sociabilização. A arte, antigamente, estava restrita aos senhores feudais, aos reis. Hoje, nas sociedades livres, qualquer pessoa pode fazer uma peça de arte e até há indivíduos sem formação que conseguem ser grandes artistas, mas não acredito no autodidactismo absoluto. O artista para crescer procura conhecimento, a comparação, o ensaio. Toda a arte tem técnica, se a tem, é aprendível”.

Durante séculos a arte era possível em reis e governantes, pessoas com uma rara formação intelectual. Hoje, havendo muito mais pessoas formadas há muito menos intelectualidade e arte nos políticos. Para Afonso Pinhão Ferreira: “A resposta está na híper informação. Actualmente, o mundo está desorientado, diz o Filósofo francês, Lipovetsky. As pessoas vivem no imediatismo, vêem a imagem e lêem pouco ou nada. Ou seja, não têm o exercício da concentração, se não se concentram não aprofundam as coisas e, portanto, não podem produzir arte. A arte exige silêncio, exige contemplação, juízo. A pessoa que não aprendeu a estar sozinha umas horas, a ler um livro, a visitar um museu, a contemplar a arte de outras pessoas, existe apenas, não vive”.
 
Transportando o presente imediatismo para a política: “Imagine que há eleições autárquicas e que as ganhamos, mas há uma abstenção de 60 ou 70 por cento. Fomos eleitos por uma minoria. A representatividade pró-democracia não existe. Estamos de tal maneira ligados aos plasmas, que não lemos nada e portanto, não reflectimos sobre as coisas. Recordo os três devedores de dinheiro à banca que foram à Assembleia da República responder à comissão de inquérito. É revoltante, o visado não sabe quanto ganha, nem quantas empresas administra, aquilo dá na TV e as pessoas assistem a isto como se fosse uma coisa normal, uma imagem a passar. Isto tem que se ler. É preciso perceber quais os critérios do Banco quando empresta 600 milhões ou se é averiguada uma eventual lavagem de dinheiro. É sempre mais fácil não ler, fazer, deixar andar. Essa falta de reflexão, introspecção de leitura está a levar a um conhecimento superficial das pessoas e a um desinteresse, afectando a arte, mas também a política”.

Como largar os smartphones, os plasmas: “Os Estados Unidos, há três anos deram-se conta do problema e fizeram uma reforma no ensino que dentro de uma década irá reflectir-se positivamente. Quem está num estabelecimento de ensino não pode usar durante algumas horas um telemóvel e há disciplinas para ensinar a cultivar o gosto pela leitura. Questiono se não deveríamos fazer uma reforma do ensino nesse sentido. Os europeus, creio que há umas três décadas tinham a primazia cultural. Era o culminar de toda uma convulsão social europeia, que gerou muita arte e muita cultura. Nos Estados Unidos não era assim, mas estou convencido que se não levarmos isto a sério, daqui a pouco tempo, eles são mais cultos do que nós, e cultura traz evolução”.

O Artista dá Eternidade ao Pensamento ao Objecto

O artista até na perfeição da obra que apresenta nunca deixa de inquietar. A certeza de uma porta é sempre o lado do observador, mas não tem nenhuma certeza do invisível: “Não sou propriamente uma pessoa que acredita no céu e no inferno. Acredito que na sociedade há um lado bom e um lado mau. Há coisas que aceitamos por bem e outras que não podemos aceitar. A porta que ali está, é a transição entre estas duas coisas, o bem e o mal, as trevas e o paraíso, no fundo a dicotomia cerebral. Nós somos uma inquietação, porque quando nos surge qualquer coisa temos metade do cérebro a dizer para fazer e outra a dizer para não fazer. Agora, imagine-se a diversidade humana vezes dois. Imagine-se a complexidade que isto é, daí a inquietude, se quero este lado ou aquele. Depois, perante o tema desta exposição pensei: Se é um espelho, tem que ter alguma coisa reflectida. A porta é de ouro e tem nela a mulher reflectida. Tratava-se de explicar porque é que a mulher era o pecado. Segue-se a simbologia da maçã. O Adão trinca a maçã, inaugura o pecado e endoideceu. Correu o risco de trocar o paraíso e passou para o lado das trevas. É evidente que tem que ser um nu. Estamos nos primórdios do mundo”.

Há aqui árvores mortas a ganhar vida, um mundo pessoal: “Estamos a falar do paraíso onde havia arte e sabedoria. Pensamos numa selva, na vida. Cada vez mais, sou um amante da natureza, uma preocupação premente por todas as razões, por aquilo que lhe fomos fazendo de mal, à terra, ao planeta. Tenho uma pequena quinta e preservo o que lá estava, mas também planto outras árvores. Esta serpente é um Medronheiro, vi-o a morrer com os seus mais de seis metros, talvez com mais de 100 anos. Olhei para a árvore e disse: Vou fazer uma serpente. Cortei o Medronheiro da morte e depois pensei como eternizá-lo. Tratei a madeira e envernizei, fiz a cabeça, primeiro em fio de alumínio, depois colei, fiz em gesso e foi para a fundição. Numa outra árvore morta, imaginei um morcego, uma ligação da natureza que achei interessante”.

Fazer uma visitação ao artista é como subir o rio até à nascente. Pelo seu leito encontramos todos os afluentes que o alimentam e nos surpreendem, em pintura ou escultura, como se não bastasse toda esta poesia visual, descobrimos ainda um livro em composição: “É de filosofia de um homem de 60 anos, mas aborda os temas actuais, escrito para ser diferente. Tem quatro capítulos, sendo o último uma reflexão muito séria. Como é que eu acho que deveria ser a constituição mundial actual. Ando a escrever há alguns anos. Falta-me meio capítulo. Sem pressa, mas convicto que este ano vou editar este livro”.

A Chegada à Política Começa na Universidade

“Não sou politicamente correcto, nunca o fui. Granjeei bastantes adversários por causa disso, porque nunca me acomodei. Digamos que, nunca fui verdadeiramente um político, mas para se conseguir caminhar na universidade, no meio dos intelectuais, tem que se fazer política, e esta quando é praticada com ética, é uma nobre função humana, daí que não alinhe em tudo”.
Quando tomou posse pela primeira vez como presidente da Assembleia Municipal da Póvoa de Varzim, Afonso Pinhão Ferreira fez questão de no discurso, esclarecer que não era imparcial: “Nunca fui e desconfio de quem diz que é. A educação que impera na assembleia não se deve ao presidente, mas a um civismo que temos na Póvoa. Não tem a ver com os partidos que estão ou não no poder. Tem a ver com a assunção por parte dos políticos, de que ser adversário não é ser-se inimigo. Muitas vezes, as pessoas confundem as coisas. Somos adversários nas ideias, não inimigos”.

E acrescenta: “Em democracia, se o povo dá a maioria a determinado partido é este que tem que governar. Tento ter duas ou três intervenções durante o mandato. Na primeira assembleia, faço um discurso, é importante dizer porque é que estamos aqui. No final do mandato, faço um outro em jeito de balanço. A intervenção do presidente da Assembleia Municipal não é dar a sua opinião, está ali para gerir. O poder executivo é mais susceptível, já o deliberativo, que é o papel da assembleia, não é tão criticável. Penso também que a importância da parcialidade torna a pessoa mais imparcial. Se tenho conseguido transmitir isso, óptimo”.

A vida amadurece, os cargos e convites crescem, e as respostas para Afonso Pinhão Ferreira, também: “Tem acontecido e cada vez mais, mas a idade traz igualmente coisas positivas. Uma é sacana e chama-se maturidade, achava mais piada quando era imaturo. E a outra é a sabedoria. Agora com 63 anos, a idade tem-me dado sabedoria e sei responder se sim, se não, consoante a minha disponibilidade e o que me vai sendo apresentado. Também é verdade que preciso do meu tempo de artista”.

Por: José Peixoto

 

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