Voz da Póvoa
 
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O esconderijo de José Saramago

O esconderijo de José Saramago

Cultura | 18 Agosto 2025

 

José Saramago gostava de afirmar que apenas três lugares no mundo lhe deram a sensação de estar verdadeiramente em casa: a Azinhaga, a freguesia de Lavre e a ilha de Lanzarote. Essa convicção ficou registada em vídeo, durante uma passagem por Lavre já depois da atribuição do Prémio Nobel da Literatura, nas instalações da antiga cooperativa agrícola.

A pequena localidade alentejana transformou-se num refúgio decisivo para a sua vida e para a sua obra. O escritor permaneceu na casa de D. Mariana, onde encontrou serenidade e proximidade com o quotidiano das gentes do campo. Nesse espaço simples nasceu Levantado do Chão, publicado em 1980, romance que inaugurou o estilo literário que viria a marcar definitivamente o percurso de Saramago.

A ligação entre Lavre e Évora também foi essencial. A distância de 52 quilómetros obrigava a deslocações frequentes, quase sempre em busca da biblioteca e dos seus livros. No cartão dessa instituição, a palavra “escritor” surgiu pela primeira vez como profissão assumida, gesto simbólico que representou a afirmação plena da sua identidade literária.

A obra escrita em Lavre reflete a dureza da vida camponesa, a pobreza persistente e o esforço constante das populações alentejanas. Ao mesmo tempo, deixa espaço para a descrição de locais de encanto e beleza singela.

O caminho que leva à ponte velha sobre a ribeira de Lavre surge como cenário de contemplação, tal como os arredores que incluem o Ciborro e outras terras vizinhas.
O presente de Lavre continua a preservar a memória dessa passagem. Os caminhos, a ponte, os campos e a casa onde Saramago viveu mantêm-se como testemunhos da ligação entre a obra e a paisagem que a inspirou. A própria D. Mariana, ainda viva, guarda na memória os dias em que o escritor fez da aldeia um esconderijo discreto.

A vida de Saramago encontrou raízes na Azinhaga, em Lavre e em Lanzarote. O Alentejo representou, contudo, a primeira afirmação consciente de uma identidade literária. Lavre permanece como um lugar íntimo, onde nasceu não apenas um romance, mas a consciência de que a palavra poderia erguer do chão a voz dos que nunca a tiveram.

Paulo Freitas do Amaral
Professor, Historiador e Autor

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