Voz da Póvoa
 
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Mulheres do Mar

Mulheres do Mar

Cultura | 26 Março 2025

 

É na orla marítima que os naufrágios mais impressionam, pelo dramatismo das situações daqueles que se procuram salvar e pela coragem, abnegação e humanidade dos que prestam socorro.

Os grandes heróis do salvamento de náufragos foram consagrados por actos de extraordinária bravura, generosidade e solidariedade realizados no litoral, sob condições adversas de mar, correndo sérios riscos de vida para resgatar pessoas, muitas vezes sem esperar outra recompensa para além da satisfação do dever cumprido.

Entre os poveiros, são figuras lendárias e referências obrigatórias para todos aqueles que, hoje, têm responsabilidades no salvamento a náufragos, o José Rodrigues Maio (Cego do Maio), o Manuel António Ferreira (Patrão Lagoa) e o João Domingues Nunes (Patrão Ladinho), mestres de embarcações salva-vidas.

Homens do mar, simples e que viveram com humildade, eram extremamente determinados, altruístas e caridosos. Quando se tratou de auxiliar o seu semelhante, realizaram façanhas de ímpar valentia, que os imortalizaram, não só pelo esforço, pelo sentimento de amor e pela fidelidade que demonstraram, mas, também, pela firme obediência que revelaram à obrigação de proteger, com todos seus recursos, quem, num momento de suprema aflição, deles necessitou. Muitas vezes, quando outros recuaram, eles decidiram fazer-se ao mar em pequenas embarcações, liderando com firmeza e saber os seus homens, no salvamento daqueles que já tinham perdido a esperança de ser socorridos.

Estes actos excepcionais só são realizados por pessoas com uma invulgar vontade, firmeza de propósito e resolução. Também exigem extraordinários sentimentos altruístas, fundados na bondade e na sensibilidade para a iminência do fim trágico de vidas e para o desejo inquebrantável de o evitar. Tais gestos só são possíveis a quem, por amor à condição humana, sente o ímpeto moral de salvar os outros.

Paradoxalmente, a figura que ilustra este texto, sendo alusiva ao salvamento de náufragos, só inclui mulheres! Podemos certamente interrogar-nos sobre o papel das mulheres no salvamento marítimo na Póvoa de Varzim. Podemos até duvidar se, face à tradição que acabámos de evocar e aos registos conhecidos, terá alguma vez existido em Portugal um salva-vidas tripulado exclusivamente por mulheres. Podemos, ainda, criticar as particularidades técnicas da embarcação e dos seus apetrechos, os curiosos cintos de salvação ou o estado do mar. Mas, isso, é ficar somente pelo exame superficial do interessante quadro que se encontra exposto no Instituto de Socorros a Náufragos.

O nosso propósito é diferente! O que nos interessa é a análise intelectual às ideias a que o pintor, através de um conjunto de mulheres do mar, deu expressão viva, suave e animada. Certos elementos que compõem a essência dessas ideias, emergem neste quadro de forma declarada e distintiva. Poderão ser considerados fortes ou fracos, consoante a sensibilidade de cada um e a reacção dessa sensibilidade face à situação figurada.

Para quem escreve estas linhas, o quadro desenvolve-se em torno das três ideias fundamentais, que consubstanciam os traços de carácter de todos aqueles que se dedicam ao salvamento a náufragos: a coragem, a abnegação e a humanidade. Porém, estas ideias não surgem desconexas. Derivam de um mesmo fundo heroico, cujos elementos se manifestam de forma igual e concordante, simultaneamente emotiva e profunda, nas mulheres da comunidade piscatória da Póvoa de Varzim.

Emotiva, porque o pintor exprime o que cada mulher sente, multiplicando-o em todas elas, de forma a que o nexo conjunto adquire a condição de paixão, pela intensidade e pela absorção generalizada de um espírito de exaltação da vida. Profunda, porque o pintor penetra na alma dessas mulheres para evidenciar que, na sua essência, há comunidade e convergência de sentimentos quando estão vidas em risco.

As mulheres do mar, perante o perigo, não se importam com a sua morte. Para algumas delas a morte, até ao momento em que têm de arriscar a vida, não tinha sido mais que uma palavra que designa uma circunstância vaga e remota, mas que, de repente, se poderá concretizar numa realidade dramática. Elas preocupam-se, antes, com a vida daqueles que amam. Por isso, a sensação que experienciam e transmitem é de serena valentia, de amor fraternal e de responsabilidade moral.

A iminente probabilidade do amor perdido inspira nas mulheres do mar uma serena valentia. Serena, porque prudente nos gestos e nas acções coordenadas. Serena, porque tranquila no espírito e imperturbável diante do perigo. Serena, porque com a graça natural e o calmo domínio das emoções que revelam diante de uma situação adversa. Valente, porque não receiam padecimentos físicos ou morais. Valente, porque afrontam o mar alterado. Valente, porque agem com temeridade.

Tendo, por vezes, vidas tão diferentes no percurso, mas tão semelhantes no amor fraternal que as norteiam, as mulheres do mar compreendem o risco e a imensa possibilidade de perigo que implica o salvamento a náufragos, mas não conseguem imaginar a vida sem aqueles que amam. As mulheres do mar identificam-se no sofrimento e na fidelidade à vida, na angústia terrível que o pressentimento da morte dos seus provoca, e na esperança do futuro que, tantas vezes, só a acção arrojada e com desinteresse pela própria vida, como é um salvamento marítimo, permite almejar.

A responsabilidade moral evidenciada pelas mulheres do mar, amadurecidas pela ingratidão da vida, é assombrosa! São mulheres que preferem morrer jovens a chorar o choro sem graça dos velhos, a chorar pelos pais, pelos maridos e pelos filhos, por todos aqueles que foram abandonados e estiveram sozinhos perante a morte. São mulheres que não querem lutos sem mortos, que se prolongam até desaparecer a esperança. São mulheres que tudo subordinam ao movimento impetuoso e entusiástico das suas almas, para salvar vidas humanas. Vencem o medo e suplantam-se, contrariando o que a inteligência recomenda.

Estas mulheres do mar, que vemos a cada passo na comunidade piscatória da Póvoa de Varzim, são a expressão da coragem, abnegação e humanidade que poderá inspirar cada um de nós a realizar feitos supremos em prol do próximo.

Almirante, António Silva Ribeiro

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