Voz da Póvoa
 
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Locadora Imaginário

Locadora Imaginário

Cultura | 18 Dezembro 2025

 


O Natal para todos são ritos: montar a árvore, preparar o peru, o bacalhau, a família reunida, as crianças correndo pela casa, curiosas para abrir as prendas. A história que vou contar não tem nada a ver com esse rito, mas era para mim um rito.

Vão perceber que a escritora que aqui escreve já tem uma certa idade, pois, para ver um filme, eu precisava ir ao cinema ou a uma locadora. E é sobre ir à locadora que quero falar. Sentimo-nos adultos quando vamos a um bar pela primeira vez e bebemos uns copos, ou quando tiramos a carta de condução; para os meninos, quando aparecem os primeiros pelos no rosto. Para mim, sentir-me adulta foi poder acessar uma sala separada do restante do espaço por uma cortina muito negra e pesada.

Como toda adolescente rebelde, eu tentava espreitar, mas os atendentes sempre me impediam. Eu nem tinha ficha: não tinha idade para ter uma. E, sinceramente, poderia inventar aqui uma idade e contar como foi maravilhoso tê-la, mas não recordo disso; o que recordo é da sala e do evento.

A locadora ficava num subsolo de um prédio muito bonito, em frente à Câmara dos Vereadores do Rio de Janeiro, a dois passos do Paço Imperial. Próximo dos dias 20 e 21 de dezembro, assim como acontecem as black fridays, a locadora anunciava que iria tirar uns dias de férias e que poderíamos alugar quantos filmes quiséssemos, para devolver apenas no primeiro dia útil do ano.

Esses estabelecimentos abriam às 10h, e muita gente precisava estar no trabalho a essa hora. Para mim, isso era irrelevante: eu ainda estava no colégio e já estava de férias. Às 10h em ponto, as portas se abriam e era como uma manada de animais entrando para conseguir os novos filmes, uma verdadeira luta por sobrevivência.

O espaço guardado pelas cortinas estava lá. Via pessoas entrando e saindo, sem nada de estranho nas mãos. Podíamos imaginar que eram filmes eróticos ou pornográficos, como muitas locadoras tinham, escondidos do grande público. Naquela época eu era destemida, e a audácia adolescente faz falta na vida adulta. Com o lugar cheio, pensei que ninguém notaria uma menina escapulir ali para dentro.

Mas fui pega. Um dos atendentes tocou nas minhas costas e disse que eu não podia entrar, que eu não tinha maturidade. Como alguém que não me conhecia podia afirmar aquilo? Munida da minha audácia típica, respondi: “teste-me”.

Ele fez uma pequena vênia, afastou as cortinas e eu caí no buraco da Alice para sempre.

Os filmes não estavam organizados por títulos, mas por diretores e atores. Alguns tinham versões adicionais que não estavam na parte de fora. Estava de costas para o atendente quando ouvi a risada dele, acompanhada de um irônico “não disse que não era para você?”. Ignorei. Comecei a buscar o que queria pelas capas, pelos nomes que ouvira tantas vezes meu pai e minha madrinha comentarem. De Almodóvar a Fred Astaire, havia tudo. Encontrei até quem não conhecia: Wim Wenders, a linda capa de Sonhos do Kurosawa, e a antiga série Shogun. Saí de lá com uns quinze filmes para os dias de festas, além de alguns natalinos para disfarçar.

Na hora de registrar, o atendente olhou-me com desdém e avisou que, quando eu voltasse, perguntaria sobre cada um, para ver se eu o tinha enganado ou não.
Saí daquela locadora como se tudo em mim brilhasse. Eu sabia o que havia atrás daquelas cortinas pesadas, tinha conquistado meu primeiro rito de Natal só meu e não tive medo de seguir o coelho branco.

Por isso, quando relembro esse fato, sinto saudade desse ritual de alugar filmes, mas também um calor bom no coração. O Natal, para mim, é isso: viver rituais, sejam os tradicionais ou os novos, e celebrar com alegria aquilo que o caminho nos proporciona. 

 

Um conto de Natal por:

Carmô Senna, uma escrita entre (a)mares

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