Voz da Póvoa
 
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Fusão Atlântica

Fusão Atlântica

Cultura | 19 Maio 2020

O que une Ponta Delgada, melhor, os Açores, à Póvoa de Varzim?  O mar? A pesca? O sonho, a evasão? Uma tendência crónica para a melancolia e contemplação? Talvez seja o Atlântico que nos liga, mas também afasta, pois o arquipélago dos Açores vive e navega tão afastado, encontrando-se a meio caminho entre a Europa e a América. Ou será que não? Na literatura, Raul Brandão, autor de “Os Pescadores” e de “As Ilhas Desconhecidas”, traçou e “pintou”, como só ele soube, o azul do atlântico na sua quietude humana, a inalterabilidade social e seu remanso natural. Este escritor da foz do Douro, na fase já madura da vida, narraria a vida dos homens do mar de norte a sul do país, ao mesmo tempo que se deu ao trabalho de desencantar as ilhas portuguesas que, a seus olhos, lhe eram desconhecidas. A verdade é que quase um século depois ainda somos capazes de reler as suas páginas cheias de encanto e descoberta.

Estamos em Maio e nos Açores é o período em que passam grupos de baleias azuis. A baleia azul é o maior animal existente nas profundezas do Atlântico. Os biólogos marinhos afirmam que a riqueza alimentícia do fundo do mar e as quantidades de krill servem para os cetáceos enquanto “estações de serviço”, fazendo com que estas se abasteçam, pouco tempo antes de rumarem viagem até aos calotes polares. Quem já teve a oportunidade de assistir a esta passagem, pelo mais pequeno instante que seja, sabe o quanto é difícil esquecer tamanho acontecimento e contentamento visual, guardando para si imagens nunca vistas. Por esta altura, os Açores seriam também a porta de entrada na Europa para milhares de velejadores e aventureiros do mar. As marinas enchem-se todos os anos de iates, veleiros, navios, cruzeiros bem como de outro tipo de embarcações em trânsito. Alguns são mesmo exemplares dignos na arte da construção naval hodierna, para lá das réplicas de embarcações de séculos anteriores que aproveitam a Primavera para navegar. Os marinheiros ou iatistas aproveitam a sua estadia para fixar pinturas das suas bandeiras nas amuradas ou passeios, tal como quando conhecem os habitantes locais relatam as suas façanhas e aventuras, ou, naturalmente, esvaziam o gin ou cerveja local.  Há também navios-escola carregados de juventude que encontra no mar espaço de aprendizagem, ciência ou terapia…ou mesmo ainda esperança no futuro, como o caso do célebre “Três Hombres”, que todos os anos regressa para servir de exemplo em ações do comércio justo, mantendo-se fiel ao transporte de mercadorias ao sabor do vento e das velas.

Ainda no verão passado encontrava-se em exibição no museu municipal poveiro, uma exposição denominada de “Atlântico”, um conjunto alargado de fotografias que documentavam uma viagem iniciada na Póvoa de Varzim e concluída em Ponta Delgada. As fotografias eram pertença do artista multimédia, Helder Luís, que acompanhou a tripulação da embarcação açoriana, “Íris do Mar”, dando, por isso a conhecer as artes de pesca praticadas no arquipélago, registando a força e a vitalidade de trabalho dum grupo de pescadores, oriundos de diferentes comunidades e nacionalidades, porventura reflexo desse universo laboral em transformação. Esta exposição, que teve direito à edição de um livro, apresenta-se enquanto curioso e belíssimo registo de imagens da actividade piscatória nos seus gestos, técnicas e modos, que cruza e aponta caminhos para uma ponte entre duas realidades próximas, ainda que distintas. Será ainda possível a partilha dos mares de forma responsável?

O horizonte marítimo nas ilhas e para os ilhéus é uma presença constante, indelével, só mesmo em período de intenso nevoeiro é que há falta de comparência, isto é, faz parte da natureza insular viver imbuído ou mesmo adicto desta paisagem azul e líquida no horizonte.  À semelhança de Raul Brandão, poderíamos exercer o direito de instalar a centelha marítima e piscatória na ordem do dia, concedendo-lhe todo o relevo e atenção mais do que merecidos. O que falta? Fundir e acender esse fogo, contagiando esta vivência com uma certeza e partilha real.

Texto: Fernando Nunes

Fotografia: Carlos Olyveira

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