Voz da Póvoa
 
...

Filantrópica, de Cooperativa de Consumo a Cultural

Filantrópica, de Cooperativa de Consumo a Cultural

Cultura | 12 Dezembro 2020

A Póvoa ama os seus, fruto da entrega dos homens e mulheres que souberam abraçar causas capazes de construir uma outra humanidade entre os viventes. Depois e sempre, da vontade se ergue o futuro. A 16 de Julho de 1935, nascia a Cooperativa “A Filantrópica”, sucessora da “Casa dos Operários Poveiros”, com um objectivo social e cultural. Pelo longo caminho percorrido, se foi adaptando aos tempos e a 27 de Julho de 1995 volta à pia baptismal e assume-se como “A Filantrópica – Cooperativa de Cultura, C.R.L.”, um desígnio que mantém.

O edifício, propriedade sua, foi construído em 1864 com o propósito da instalação do “Monte-Pio Povoense”. Dentro das suas paredes já albergou um destacamento militar em 1915, foi sede da Banda Musical Povoense e sede da Sociedade Columbófila, foi uma escola primária feminina e o primeiro supermercado da Póvoa de Varzim, inaugurado em 19 de Outubro de 1969. Recentemente, sofreu uma grande restruturação e prepara-se para voltar a abrir a sua galeria de artes e um conjunto de actividades ligadas à cultura.

Luís Alberto da Silva Oliveira Custódio nasceu em 1956 na Póvoa de Varzim. É sócio de uma empresa de contabilidade e cooperador d’A Filantrópica desde 1976, ocupando desde 2016, a presidência do Conselho de Administração.

Da vontade de cooperar se fez notar pelas ideias e, um dia bateram-lhe à porta para assumir a direcção. “Como é meu apanágio, participo nas Assembleias Gerais das colectividades que pertenço, procurando apresentar algumas ideias que acabavam por cair no arrefecimento. Já naquela época (1997), tinha a sensação que o cooperativismo de consumo, com o aparecimento dos supermercados que concorriam com outras potencialidades, se tinha esgotado no tempo e, a Filantrópica estava a viver um período de grande dificuldade, arriscando mesmo a sua sobrevivência. Era preciso direccionar para outros fins e por isso, preconizei transformar o objecto social de uma cooperativa de consumo, para uma cooperativa de cultura. É evidente que as minhas ideias nem sempre foram bem interpretadas, mas um dia, um elemento dos órgãos sociais bate à minha porta, convidando-me para vir para a Filantrópica”, recorda Luís Alberto.

E acrescenta: “A situação era muito má, tínhamos uma dívida considerável, os próprios funcionários eram credores, não havia no supermercado produtos de acordo com a procura, tínhamos um edifício em degradação e até havia uma imagem político-partidária. Ingredientes que em nada ajudavam na continuidade desta casa. Para assumir a direcção coloquei como condição a saída dos anteriores elementos, ficou apenas um. Não havia nada contra as pessoas, algumas delas mereciam-me a máxima consideração. Recordo que o presidente da Assembleia Geral da época era o professor Filomeno Terroso, uma pessoa íntegra. Sempre defendi que, de vez em quando, deve haver renovação, seiva nova. A experiência ensinou-me que não deve ser total, mas faseada, possibilitando que algum conhecimento anterior se mantenha. Na altura, chamava-se direcção, hoje Conselho de Administração, não é por razões de pomposidade, o código cooperativo é que alterou a designação. A segunda condição era a entrada de pessoas da minha confiança e por isso fui eu que compus a lista. A terceira condição foi a apresentação de um programa que visasse a transformação da cooperativa de consumo numa cooperativa de cultura. É evidente que isso demorou algum tempo”.
 
Ainda se manteve algum tempo como cooperativa de consumo, mas aos poucos foram criadas soluções para recuperar a Filantrópica, recorda Luís Alberto: “Criámos alternativas, designadamente de caracter económico. Cedemos à exploração, durante cinco anos, o supermercado. Demos um passo importante na criação de um sector gímnico, uma forma de angariação de receitas. A Póvoa em 1987 teria quatro ginásios. Dez anos depois, quando saí da direcção, tínhamos 162 pessoas a praticar actividades gímnicas. Enquanto houvesse procura, mantínhamos a actividade, cientes que, não eram essas valências que queríamos desenvolver. Não navegamos à vista, temos um rumo e procuramos desenvolver esse projecto em harmonia com as necessidades, com o hiato vigente. Começámos por querer criar uma escola de música, mas muito pouco tempo depois o vereador da cultura, Augusto Sousa, depois de ter estado com uma delegação em Montgeron, anuncia esse propósito e, nós virámos a agulha para a criação de uma escola de Artes e Ofícios. Não houve unanimidade na direcção, mas na verdade, ainda hoje é uma das razões de ser d’A Filantrópica, agora com novas condições físicas, com a particularidade de não estarmos a invadir áreas de outras associações, que é um outro dos princípios que aqui temos”.

A Cultura Passou a Ser o Domínio da Palavra Filantrópica

“O primeiro professor, na área do desenho, foi o Eduardo Bompastor, que fez um trabalho extraordinário e responsável, esta instituição deve-lhe essa homenagem. Foi ele que me apresentou o pintor belga, Daniel Hompesch. Depois, tivemos o Manuel Figueiredo, a Isabel Lhano, o Ilídio Lucas, a Isabel Serpa Pinto, todo um conjunto de bons professores. Alguns acabaram por criar as suas próprias escolas e desenvolver os seus próprios projectos nessa área”, acrescenta Luís Alberto.

Nas remodeladas instalações d’A Filantrópica, nasceu o cantinho do Hompesch: “Há cerca de dois anos a Maria José Marques, viúva do pintor, telefonou-me a dizer que tinha uma mesa e uma cadeira que acompanhava o Daniel desde a criança sonhadora de cores. Perguntou-me se queríamos ficar com aquela memória física. Agarrei a ideia e propus aos meus colegas do Conselho de Administração que criássemos aqui um cantinho do Hompesch, exactamente porque foi aqui que ele começou a ensinar e é a nossa modesta contribuição para homenagearmos a sua arte e qualidade de trabalho. Fica à entrada das nossas oficinas de arte. Vai ter alguns objectos pessoais, oferecidos pela viúva e, será para nós um momento de reflexão. O Daniel Hompesch tinha chegado à Póvoa e resolveu criar raízes. Apresentaram-me alguns trabalhos dele e concordei de imediato com o Eduardo Bompastor, que aproveitou uma oportunidade profissional que o impossibilitava de dar colaboração e demos o lugar ao Daniel. Cheguei a assistir à recuperação de ícones russos com técnicas da época, o que só por si, dava a entender que estávamos na presença de alguém de outro nível, no mundo das artes”.

A Biblioteca Municipal, hoje, guarda a memória e os livros de instituições como A Filantrópica, o Clube Naval ou do Desportivo da Póvoa, que no seu passado foram construindo as suas bibliotecas: “Os estatutos de 1935 tinham, entre outros objectivos, a criação de uma Biblioteca e de um Museu. Foi feita uma campanha de angariação de livros, que as pessoas foram oferecendo, alguns muito interessantes. Esse espólio está depositado na Biblioteca Municipal, por decisão de pessoas que nos antecederam. Naturalmente, que o fizeram com o melhor das intenções. Tive oportunidade de verificar que está bem tratada e catalogada, mas continua a ser propriedade da Filantrópica e, a qualquer momento pode ser equacionada o seu regresso. Não é prioritário e poderá nem se justificar. Os fundadores da Filantrópica fizeram-no com a intenção de proporcionar o desenvolvimento intelectual dos seus cooperadores e familiares, numa época em que o analfabetismo era a tónica. Não é por acaso, que aqui se liam cartas pessoais, enviadas do estrangeiro e da diáspora e, se ensinava a ler. Preocupações que considero da maior nobreza. Entre os volumes que compõem a nossa biblioteca, há livros que têm uma componente operária interessante, uma vez que a Filantrópica é a sucessora da Casa dos Operários Poveiros. O lado de ensinar continuou. Numa fase em que vieram muitos emigrantes estrangeiros do leste europeu, aqui se ensinou gratuitamente a língua portuguesa durante muito tempo. Esta casa atingiu o estádio em que se encontra graças à contribuição graciosa e voluntária de muitas pessoas. De outra forma não seria possível, a começar pelos órgãos sociais que são voluntários e não remunerados”.
 
A Galeria de artes d’A Filantrópica foi mais um projecto de Luís Alberto que ganhou raízes: “Nos anos 90, quando propus a criação da galeria, houve quem se opusesse, dando como exemplo o facto da Galeria Di Cavalcanti ter encerrado. Acabaram por me dar uma ideia e, por preços módicos comprei os projetores dessa galeria para instalar na nossa. O primeiro a expor foi, o José Francisco Miranda com o título ‘Vocação Adiada’. Um dia, convidou-me para ir a casa dele e fiquei admirado com a habilidade que tinha para a arte pictórica. Desafiei-o a dar o pontapé de saída nas exposições da Galeria. Mais tarde, alguns dos descrentes na iniciativa, tornaram-se nos maiores apoiantes, o que é digno de registar. A galeria viajou dentro do edifício por várias salas até se estabelecer no rés-do-chão, logo que se extinguiu o supermercado”.

Neste momento, o espaço tem as condições bastante melhoradas: “Vamos poder realizar um conjunto de exposições, que vão no seguimento daquilo que aconteceu no passado e, penso que agora, tirando partido não só dessa experiencia, como ainda das novas condições, vamos ter um espaço bem apelativo, multifuncional, que servirá para as nossas conferências, colóquios e debates e para rubricas novas que estão na forja e queremos pontificar, mal seja possível. Para esse efeito, o elemento responsável pela galeria é a nossa colega do Conselho de Administração, Ana Carina Romero, que também é responsável pelas Oficinas de Arte”.

Venha Conversar Connosco é um Elogio ao Conhecimento

A ameaça de uma Assembleia Geral onde se iria discutir uma comissão liquidatária fez regressar Luís Alberto: “Bateram-me à porta no sentido de eu procurar evitar que isso acontecesse. Voltei a colocar algumas condições. Uma delas é que o meu nome fosse consensual porque detesto lutas intestinas e não tenho feitio para isso, nem capacidade de encaixe. Tinha que haver um clima de serenidade e consenso. Como segunda condição voltei a constituir a equipa. E a terceira era que o programa gizado em 1987 e no meu entender, em parte suspenso ou alterado, fosse recuperado. A primeira pessoa que convidei, que já tinha colaborado comigo nos anos 90, foi o Afonso Pinhão Ferreira, para presidente da mesa da Assembleia Geral, como garante da estabilidade. Depois, é um homem de cultura, alguém que tem a ver com os princípios que emanam desta casa. Seguiram-se os convites a outros amigos, curiosamente pessoas que tinham estado comigo na primeira passagem. Apenas duas pessoas por razões profissionais não puderam vir. Temos também algum sangue novo”.

O antigo nunca quis ser moderno, apenas adaptar-se: “Demos continuidade à escola de Artes e Ofícios, hoje Oficinas de Arte. A rubrica ‘Venha Conversar Connosco’ foi criada nos anos 90, num ambiente envolvente. Hoje, participativo e mais próximo do informal. Foi um sucesso e continuará a ser. Fizemos o mesmo com o turismo cultural, recuperando os nossos parceiros culturais, subordinado a quatro vertentes – património, paisagem, gastronomia e o convívio. Fizemos imensos desde 2016. Tivemos que suspender devido à pandemia. Aliás, suspendemos 18 iniciativas desde Março, previamente planeadas. Em 2021, logo que as condições o permitam teremos que recuperar as que forem possíveis, há convidados que já não podemos contar com eles. Estamos a elaborar um plano de contingência que vai ser sujeito à aprovação das autoridades de saúde locais. Vamos procurar, garantir as medidas de higienização e de segurança, para as pessoas desfrutarem de bons momentos aqui proporcionados”.

Concretizada a remodelação do edifício, Luís Alberto acredita que dar melhores condições às actividades culturais no seu interior, é já uma conquista: “Não iremos mudar muito o nosso figurino. Achamos que se insere naquilo que a Póvoa precisa. Iremos continuar com as conferências, os colóquios, os debates, com as oficinas de arte, possibilitando aos vários escalões etários, desenvolver aqui as suas capacidades, a sua aptidão, mas também tirando partido das gerações que estão a envelhecer e que querem fazê-lo da forma mais salutar possível. A Filantrópica também tem essa possibilidade, não temos aqui um padrão, somos intergeracionais e vamos tirar partido disso”.

“Eles não sabem que o sonho é vinho, é espuma, é fermento,

bichinho álacre e sedento, de focinho pontiagudo, que fossa através de tudo num perpétuo movimento”, assim contou da inspiração António Gedeão. Chegar a uma instituição de bolsos rotos, com o risco de se tornar apenas memória e lançar um projecto megalómano para as posses d’A Filantrópica, só pode nascer de um sonho feito obra: “Na lista que apresentei em 2016 a sufrágio, tinha por título acreditar. É acreditando nas nossas capacidades, na sociabilização, que nós pusemos em acção um conjunto de ideias e preocupações que felizmente foram entendidas e atendidas. Também beneficiámos, é preciso dizê-lo, do nosso município que apoiou esta realização de obras, que de outra forma não era possível realizar. Não vamos fazer ainda tudo o que desejávamos, mas concretizámos uma boa parte. Tivemos a felicidade de ser compreendidos e de acreditarem no nosso projecto. Para estas obras que estão a chegar ao fim, os dois arquitectos responsáveis pelo projecto, Rui Bianchi e o José Ribeiro, bem como o engenheiro da parte de estruturas e segurança, Manuel Angélico, fizeram-no graciosamente. Com as condições fortemente melhoradas, o desafio, agora, é justamente rentabilizar os espaços”.

O futuro foi também acautelado: “Estamos a criar condições. Não é por acaso que muitas das alterações estatutárias que fizemos visaram agilizar procedimentos. Um dos artigos propõem-se evitar que isto possa um dia cair em mãos mal-intencionadas. Em memória das muitas pessoas que por aqui passaram e que deram o seu contributo, houve da nossa parte o cuidado de garantir que, em caso de falência ou insolvência, todo este património passa a ser do município, embora com a obrigatoriedade de manter-se na esfera da cultura. Enquanto houver condições, continuará na mão dos seus cooperadores. Desta forma não desperta apetites menos desejados”.

Para Fernando Pessoa: Deus quer, o homem sonha, a obra nasce. E Luís Alberto sonhou: “Quando diz, se alguma vez sonhou, sonhei. Achei sempre que era possível fazer alguma coisa desta estrutura que convém sublinhar, tem localização, tem património, tem espaço e até tem gente com vontade de trabalhar. Eu não queria sair daqui sem concretizar mais algumas coisas. Não preciso de dizer que isto implica um esforço titânico. Esta fase das obras foi de um desgaste tremendo. As pessoas estão longe de imaginar o que representou em termos de esforço, tivemos que suspender as nossas actividades de sala. Beneficiámos do apoio da nossa Câmara e do Museu Municipal que nos possibilitou a realização de algumas iniciativas. Com as obras deixámos de ter receitas. Essa gestão implicou muita entrega. Felizmente, estou numa fase em que tenho a minha vida profissional e familiar estabilizada, porque o que me tira horas de sono é a Filantrópica. São muitas as noites que não durmo, a pensar em soluções, mas a verdade é que, com grande satisfação vejo surgir um conjunto de projectos que ambicionei e que foram partilhados por colegas e estão na eminência de se concretizarem. Outros sonhos vão continuar, o que faz desta casa um Fórum de Ideias e um lugar de cidadania. É verdade, sonhei.“

Por: José Peixoto

partilhar Facebook
Banner Publicitário