Voz da Póvoa
 
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Em Todos os Fevereiros Doutrinários me Revelo

Em Todos os Fevereiros Doutrinários me Revelo

Cultura | 24 Dezembro 2020

Do mar herdou uma família de pescadores, residente nas Caxinas, contudo José Alberto Postiga nasceu em 1977 na Póvoa de Varzim. Os costumes familiares levaram-no para a pesca aos 11 anos. Quando somou o dobro da idade de tardar, rumou à Suíça, onde reside e trabalha, exercendo o cargo de líder de grupo na área da construção modular. É um autodidacta da palavra poética, mas acima de tudo um sonhador. Entre outras actividades literárias e culturais, assinou, durante o ano de 2017, uma crónica no Jornal Gazeta Lusófona direccionada à comunidade lusa residente na Suíça. E em 2018, foi membro organizador do primeiro certame cultural realizado pela diáspora portuguesa na Suíça central "Expo Cultura Lusa". Participou na antologia À Sombra do Silêncio (2018), edição bilingue, português, francês. Depois de Palavras Sem Preço (2014), seguiu-se O Inventário do Sal (2017), A Litania da Cinza (2018) e Fevereiros Doutrinários (2020).

A Voz da Póvoa – Este último Livro verte muito do personagem Autor…

José Alberto Postiga – É completamente autobiográfico. É factual, porque eu e os meus amigos sabemos que estou do outro lado da fronteira, mas é também ir mais além, dar ao leitor outra visibilidade daquilo que, sistematicamente procura. É através da poesia que essa descoberta, essa significação se apresenta em ‘Fevereiros Doutrinários’, um livro com 29 poemas, tantos, quantos dias tem o Fevereiro bissexto. Eram muitos mais, mas fui limpando, não só para dizer apenas, o húmus poético, mas também para não me expor demasiado. Mesmo biográfico, queria que algo ficasse oculto. Os poemas retratam os meus 14 anos de emigração. Desde o primeiro dia em que deixei Portugal para viver e trabalhar na Suíça e depois, todos estes anos, com algumas derrotas e vitórias, mas também muitos silêncios. Aliás, o silêncio marca muito este livro.  

A.V.P. – Se o silêncio falasse, afinal ele nunca se cala, explica-se ao pensamento…

J.A.P. – Faço lutas diárias e escrevo para me abstrair do mundo. Este livro resulta de poemas escritos nos últimos dois anos e, isto aconteceu depois de ter sido abalroado por dois versos da fadista Mariza «no egoísmo louco, eu chego a desejar que sintas o que eu sinto, quando me sinto só». Do outro lado da fronteira onde a vida me tem corrido bem, mesmo estando rodeado de muita gente, muitas vezes eu não estou na frequência dessas pessoas e isso traz-me uma solidão imensa. Querer que o leitor sinta aquilo que sinto quando me sinto só, é retratado nesses poemas.

A.V.P. – Rejeitar o que é nosso é por vezes mais difícil, porque o publicado é já dos outros, mas como vê o leitor quando reinventa nos seus poemas?

J.A.P. – Escrever é alastrar. Há autores que escrevem com um só sentido, criando uma barreira, como se não quisessem que o leitor passasse dali. É como se a pergunta ficasse a latejar no leitor. No meu caso, gosto de proporcionar ao leitor várias viagens. Neste livro, cada poema não tem apenas uma direcção. O leitor pode sempre escolher o seu caminho, nele. Da interpretação de um poema, podem surgir imensos cenários e, esses cenários existem. Há múltiplos caminhos por onde o leitor pode seguir.
    
A.V.P. – É possível ausentar-se, ser ausente, mas também estar presente?

J.A.P. – Escrevi o livro na primeira pessoa, mas esse eu, como Rimbaud diz, “eu sou o outro”, também me parece que o meu eu, são cinco milhões de Portugueses que abandonaram a terra que tanto amavam para ir pelo mundo. Hoje, partimos e o sentido da descoberta é outro. Temos a necessidade de nos afastar. Quem parte, procura uma história de sucesso que nem sempre encontra. Fui pescador, embora tivesse olhado dentro da morte algumas vezes, penso que naufragamos muito mais em terra que no mar. O que pretendo é que o leitor se reveja nestes poemas, nessas ausências. 

A.V.P. – Em tudo na vida crescemos pela insistência da vontade e quando maduros começamos a rejeitar menos, apenas porque somos mais selectivos…

J.A.P. – O que acontece comigo. Digo que, o primeiro livro que publiquei, hoje, não o faria. Os outros três, de forma ajuizada, sim. Com a escrita começamos a fazer um filtro, uma depuração natural, porque se trata de nos responsabilizar mais pelo que escrevemos e editamos. Olho para ‘Palavras sem Preço’, o meu primeiro livro e percebo que daqueles 50 poemas, aproveitaria uns oito. Como esse livro está fora de circulação e de contrato, vou usando esses poemas. Integrei um no ‘Inventário do Sal’, outro no ‘Litania da Cinza’ e um enxerto neste último livro. Dessa forma, fica o que valeu a pena ter escrito, tudo o resto desaparece. Não quero embaraçar o leitor com informação desnecessária.  
  
A.V.P. – No entanto, o primeiro livro é aquele que lança o poeta, pelo menos liberta-o…

J.A.P. – Temos que começar, nem que esse começar seja o erro. O erro de certa forma, confere-nos humanidade, ele só acontece a quem tenta, a quem trabalha, arrisca e ousa. Quem deixa dentro da gaveta arrisca o esquecimento, o não existir.
     
A.V.P. – Procura-se o livro ou ele aparece em palavras soltas, cada uma encerrada numa ideia pré-concebida?

J.A.P. – Curiosamente, começo sempre por escrever poemas soltos, como se vivessem apenas aquela curiosidade. Nunca, sei o que o livro vai ser. Tenho uma espécie de lâmpada gigante, onde coloco poemas que vou escrevendo. Embrulho-os e lanço dentro da lâmpada. Sei mais ou menos o que lá existe. Depois, quando o tema surge na minha cabeça para ser trabalhado, começo a desembrulhar os poemas que se iluminam e a partir daí, revejo a matéria escrita. Há sempre um caminho já feito sem que o saiba antes.
    
A.V.P. – O escritor já se adaptou a pensar e escrever no teclado ou a caneta ainda sobrevive agarrada à ideia romântica do cheiro do papel?

J.A.P. – Tudo o que vem da inspiração momentânea é para o papel. É uma forma de não deixar fugir nenhuma palavra. Depois, a limpeza é toda feita no computador. O acrescentar, cortar, dar-lhe a sequência em página. Acho que o caminho mudou. Antes escrevia-se do papel para a máquina e hoje, escreve-se da máquina para o papel. As tecnologias quiseram facilitar e se assim o entendermos, vamos usá-las na possibilidade de criar o nosso mundo. Para mim, o último reduto será sempre o papel.
     
A.V.P. – Concluído o poema, há sempre uma pincelada na metáfora?

J.A.P. – Por norma, o poema acaba mais pequeno. Não me lembro de fazer crescer nenhum poema. Tenho dois conselheiros na literatura, um homem e uma mulher, ambos com mais de 60 anos. Antes de enviar um livro para o editor partilho as leituras com eles. Depois, as conversas encontram-se com as palavras do livro, do poema. E não o nego, por vezes mudo um ou outro entendimento. Este livro tem poemas mais longos, porque senti que eram palavras que contam sem se alongarem. Quero sempre, que fiquem portas abertas por onde o leitor possa entrar nos mundos em que eu vivo.
    
A.V.P. – Há palavras apetecíveis que vivem de mão dada no livro, palavras amantes…

J.A.P. – É uma analogia bonita, essa. Por vezes sinto a necessidade de encontrar duas palavras com o mesmo significado, mas que têm outra fonética. É uma espécie de simbiose, onde, como disseste, as palavas dão a mão uma à outra. Não sei se apaixonadas ou aquietadas.
   
A.V.P. – Quando pensa e diz: o livro está encontrado.

J.A.P. –  Quando decido que está, nunca está. Por isso, não sou muito atrapalhado em enviar os livros para os editores. Dou sempre um período de carência muito grande. Tenho um romance escrito há oito anos e ainda não o revi, muito menos enviei para qualquer editor. Parece que está, mas! O processo criativo acontece de uma forma natural e os livros têm que lhe seguir o rasto. Até lá, esperam.
   
A.V.P. – O livro habita a cabeça, é uma memória, sai da cabeça e apaga-se?

J.A.P. – Leio de forma excessiva. Tenho cerca de 500 livros numa estante, todos lidos. Não tenho por hábito encher estantes de palavras que desconheço, por ainda não as ter digerido. Dos lidos, fica alguma memória, alguns, até a contamos cheia de imperfeições, mas há qualquer coisa que ficou a remexer na cabeça. Os meus livros, os que escrevo, também lhes acontece o mesmo destino, a maioria dos poemas apagam-se da cabeça, mas há sempre algum que fica pela lembrança de uma palavra, de um nome, de uma verdade.
 
A.V.P. – O poeta não promete futuros, escreve a pensar nele…

J.A.P. – A poesia não é um compromisso que eu tenha com alguém. Há quem me questione, porque é que não procuro contar ou romancear no caminho de uma maior visibilidade. Eu não vivo da escrita nem tenho qualquer compromisso. Tenho um romance para editar, um dia vai-lhe acontecer isso, as mãos dos outros. A escrita é uma forma de eu me equilibrar, aceitando desequilíbrios. Não pretendo ser escravo da escrita, apenas pretendo o seu questionário.
 
A.V.P. – Como vê um espaço de palavas como o Correntes d’Escritas, onde a sementeira tem dado os seus frutos?

J.A.P. – Mesmo na fartura de palavras que neste momento existem, acredito sempre que há lugar para mais um. Os escritores são como os frutos, cada um com sabores diferentes, uns mais próximos, outros absolutamente raros, únicos. Não sou crítico de ninguém. O importante é que as pessoas leiam, porque esse exercício de leitura acabará por encontrar os melhores. E os melhores são sempre aqueles onde nos revemos no contar e nos identificamos. Há livros que gostamos pelo prazer que nos dão. Acima de tudo, cada um deve ler aquilo que lhe apetece.

A.V.P. – Os autores no seu comunicar, por vezes, afastam-se dos leitores…

J.A.P. – Há autores firmados que não precisam de provar nada a ninguém e que têm a liberdade de dizer da sua cabeça. Falar da literatura, aquela que tem valor, aquela que acrescenta. Depois, vejo-os a falar numa frequência que ninguém os quer ouvir ou que não cativa ninguém para entrar por essa literatura. O discurso tem que ser outro, para convencer os leitores da literatura suave, a usar uma outra cuja exigência é mais do que amar. É preciso também ser amado.

A.V.P. – Há alguma magia ou algum despertar capaz de levar o leitor pelo caminho da verdadeira literatura?

J.A.P. – Este entrelaçar de muitos autores que passam pelo Correntes d’Escritas podem sempre alertar, convidar, convencer as pessoas a experimentar. Para resgatar alguém, tens que falar na mesma frequência, isto para que haja entendimento. A Marta Bernardes disse que tínhamos que subir ao povo. Acho que deu a resposta.

A.V.P. – Como é que os suíços vivem os livros e as suas escolhas?

J.A.P. – O povo suíço tem o romance mais enraizado nos seus hábitos de leitura. Poesia é uma sombra sem luz e sem objecto. Fui procurar um livro de poesia a uma das maiores livrarias suíças, só para perceber os seus gostos e, entre 12 mil livros físicos, não tinha nenhum de poesia de autor suíço, apenas algumas traduções. Na comunidade portuguesa, existem poucos hábitos de leitura e dos poucos que existem não sei se podemos chamar de literatura, o que lêem. Actualmente, estou a colaborar com a Universidade Popular de Lausanne, que me convidou para fazer umas conferências de literatura viva. Marcamos uma conferência por mês, abordando um autor diferente em cada conferência. Escolho o autor, trabalho a obra dele, o último foi José Tolentino Mendonça. São autores brilhantes que toda a gente deveria conhecer, mas numa turma de uma dúzia de inscritos, poucos são aqueles que eram à partida o meu alvo a atingir. Ainda pensei que poderia resgatar alguém para a leitura, mas fui sempre um sonhador. Os que consegui arrastar já tinham alguns hábitos de leitura. A arquitectura das coisas pequenas é uma luta difícil de travar. 

Texto: José Peixoto
Fotografia: Rui Sousa

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