Voz da Póvoa
 
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É-Aqui que o Festival INternacional se Fez Ócio

É-Aqui que o Festival INternacional se Fez Ócio

Cultura | 22 Outubro 2022

 

O zero é um número que parte da esquerda para a direita para se valorizar. No entanto, valer zero pode significar nada ou tudo se, por exemplo, nos referirmos à edição zero do É-Aqui-IN-Ócio, o Festival Internacional de Teatro da Póvoa de Varzim, que este ano actualizou a numeração para a sorte do número 13, para que não continuássemos a achar que os anos, afinal tinham muitos mais meses do que pensávamos. A pandemia ajudou no acerto de contas, foram dois anos sem reinterpretar a ‘Desimaginação-Farsa do Quotidiano’ uma produção do Varazim Teatro ainda antes de se constituir como Associação Cultura a 26 de Setembro de 1997.

“Diria que foi um número feliz e de sorte, embora a sorte dê muito trabalho. Digamos que foi uma edição feliz com alguma sorte porque por vezes prevemos fazer as coisas que acabam por não acontecer e não é por autoria nossa, mas por motivos alheios à nossa vontade. Acabamos por concretizar tudo o que tínhamos previsto e a reacção do público foi muito positiva. Sim, acho que a 13ª edição do festival foi de sorte”, disse Eduardo Faria director do É-Aqui-IN-Ócio e presidente do Varazim Teatro.                                 
Como se vivem nos bastidores os dias antes do festival, “é muito complicado, é um cansaço e uma ansiedade muito grande e por vezes entramos num estado de tal forma mecânico ou de ausência de consciência que nem sempre temos as atitudes mais racionais. Quando paramos para pensar não lembramos ter passado por ali. É bastante desgastante para toda a equipa que colabora para que este festival aconteça. É algo que nos absorve bastante, mas penso que é também essa adrenalina que contém uma certa embriaguez que nos tira alguma lucidez, mas ao mesmo tempo nos permite suportar, aguentar e no final obter prazer”.

Eduardo Faria explica como se chega ao tema e à forma de construir a árvore do festival: “É trabalhado com mais de um ano de antecedência. Estou ainda a viver a ressaca desta edição, mas tenho já muito trabalho feito para a próxima. A antecedência é necessária para podermos ir ao encontro da disponibilidade dos participantes. A confirmação dos espectáculos, por vezes obriga a algum ajuste nos dias, mas o grosso da programação tem que estar pronto muito antes porque obedece a uma lógica. Desloco-me muitas vezes para ver teatro, para descobrir o que pretendo enquanto director artístico do Festival e que pode valorizar o evento”.

No decorrer do festival, o prometido na programação pode ter que sofrer ajustes de última hora: “Tivemos uma peça que deveria ter acontecido junto ao monumento Evocação da Lota (Mujer Destejida) que acabou por ser transferida para o Espaço Junqueira 25, porque era previsto chover. Na realidade não choveu, mas a decisão tem que ser tomada com alguma antecedência para que a peça aconteça. O certo é que grande parte das pessoas que assistiram a essa performance não saíram defraudadas porque se sentiram mais aconchegadas e confortáveis no espaço alternativo. Em tempo muito rápido, criámos uma ambiência que agradou às pessoas”. 

E o director do festival acrescenta: “Há situações que são imprevisíveis. Sabíamos que o actor, Pedro Diogo, vinha de Bilbau para se juntar aos seus colegas no espectáculo da Companhia Chapitô que estava marcado para as 18h30 e a sua chegada ao aeroporto Sá Carneiro estava prevista para a 15h30. Ou seja, havia uma margem de três horas que assustam sempre, mas quem não arrisca não petisca. Há última da hora pode haver sempre alguém que por inesperado motivo tenha que faltar, mas não nos podemos deixar condicionar por esse receio”.

O público repetente concorda que esta foi a melhor edição do É-Aqui-IN-Ócio: “Tivemos propostas muito diversificadas e algumas delas completamente iniciáticas para a Póvoa, não é habitual termos aqui espectáculos com essas características. O festival obedece aos recursos que temos. Avançamos quando temos a confirmação dos apoios que nos permitem fazer contratos com as estruturas convidadas. Digamos que acrescentamos aos apoios institucionais alguns patrocínios, mas há um momento em que não podemos ir mais além”.

O Teatro é a Simbiose entre o Actor e o Espectador

Criar uma peça implica inspiração e por vezes muita investigação: “Cada pessoa tem o seu método. Há quem se aplique numa determinada linguagem e o seu empenho visa sempre aprofundar, explorar e transformar essa mesma linguagem. No meu caso, fascina-me encontrar e entrar por diferentes linguagens. Depois, estudo formas de as poder usar em criações nossas. Este espectáculo que tem de facto a ver com a identidade e a memória colectiva da Póvoa (Veias de Sal numa Terra com lágrimas de Mar) permitiu-me explorar uma outra linguagem teatral, um teatro mais visual, mais físico, quase sem palavras, sem uma narrativa oral que conduza e dirija o espectáculo. Claro que para arriscar foi preciso um maturar de ideias, de pesquisa, de experimentação ao longo de muitos meses e depois um trabalho físico mais aprofundado nos últimos dois meses. Tivemos os primeiros ensaios em Julho, com um elenco de jovens que não são poveiros e foi preciso fazer um trabalho de biblioteca, de museu, de arquivo para se absorver o máximo de conhecimento sobre a origem e a identidade de ser poveiro, para depois podermos trabalhar em conjunto e ser mais fácil dialogarmos. Muitas das sugestões partiram dos próprios intérpretes e depois adaptadas à minha ideia de espectáculo pretendido. Tivemos sessões de ensaio na praia para contactar a realidade da apanha do sargaço, a força das marés, a calmaria, os barcos na faina”.

A estreia da peça “Veias de Sal numa Terra com lágrimas de Mar" encenada por Eduardo Faria, teve três apresentações, a última das quais no domingo, dia 25 de Setembro, à tarde: “Nós sabemos que há um grosso da população que não sai ou não pode sair à noite. Estabelecemos uma parceria com a União de Freguesias da Póvoa de Varzim, Beiriz e Argivai, e embora os nossos preços de bilheteira sejam acessíveis, há sempre alguém que não pode pagar. Com esta parceria foi possível adquirir e distribuir uma parte substancial dos bilhetes por um público mais sénior, mais enraizado com a identidade poveira que o espectáculo representava. Além disso, uma grande parte nunca tinha ido ao teatro. Mais do que o ponto de vista artístico, é o viver em comunidade que é importante. Nestes 25 anos, continua a haver gente que pensa que só fazemos teatro para alguns, porém e esta jornada foi importante para quebrar um pouco essa barreira, o que fazemos é para todos, mesmo que não seja um espectáculo com uma linguagem comum, acessível, as pessoas desfrutaram. Devemos trabalhar para transformar, devemos ser o veículo que permite ao espectador se encontrar na obra”.  

O universo feminino e a memória guineense das canções do músico e compositor Mû Mbana justificam o convite: “No ano passado, a temática do festival passava muito pela identidade e pelas origens e quis convidar o Mû. Estabelecemos uma relação de proximidade à distância, mas não foi possível contar com ele por questões de agenda. Este ano ele voltou a estar presente no Correntes d’Escritas, e então conversámos e acertámos a sua presença que muito nos honrou”.

Inquestionável no festival foram as conferências que Eduardo Faria quer repetir nos próximos eventos: “É o mais instável porque não temos recursos para pagar às pessoas para virem oferecer o seu conhecimento, estamos sempre sujeitos à sua disponibilidade. O ser activista não significa que tenha que viver em dificuldades, tal como ser escritor ou ser poeta. Ou seja, devem ser remunerados. Naturalmente, tudo faremos para que as mesas de reflexão continuem a integrar a programação do festival porque valorizam o É-Aqui-IN-Ócio”.

O Amor Profissional é o Filho Perfeito do Teatro Amador

Passaram 25 anos, só possíveis no acreditar: “Sempre pensei que a Póvoa era um território onde podia nascer uma companhia profissional de teatro. Confesso que durou mais tempo do que tinha imaginado e acho que ainda há muito para percorrer. Continua a haver necessidade de olhar para o que foi feito, temos consciência do caminho, do percurso, mas não basta nós sabermos, é preciso que a comunidade o saiba também”.
Para Eduardo Faria haverá sempre Varazim Teatro e a Companhia Certa: “A associação tem na sua génese um grupo de amadores e a criação da Companhia Certa ofereceu uma estrutura profissional dentro da associação. Digamos que agora o mercado sabe que tudo aquilo que a Companhia Certa apresenta é uma criação profissional. Com a marca Varazim Teatro temos a formação, programação e oficinas que produzem espectáculos representados no Garrett ou em escolas”.

Há mais viagem com a Companhia Certa nos últimos anos, participa em mais festivais e espectáculos fora de portas. “O que acontecia antes era que estávamos constantemente a criar e a apresentar e não dava tempo para pesquisar e enviar propostas. Foi uma das coisas que o espaço-tempo da pandemia nos permitiu pensar, restruturar e desenvolver trabalhos e procurar apresentá-los. Ainda não estamos como desejávamos, mas inevitavelmente lá chegaremos. Isso é que dá estabilidade à estrutura e não os apoios. Os apoios da autarquia e da DGA são bem-vindos, mas não cobrem as despesas. No entanto, permitem produzir mais recursos”.

Um actor não tem horário, nem calendário de trabalho: “Procuro sensibilizar as pessoas que trabalham comigo e que se têm mostrado disponíveis, embora nada possa ser imposto. O talento trabalha-se, o que é necessário é gente disponível. Uma grande parte das equipas com quem tenho tido a felicidade de trabalhar, são pessoas muito criativas e que se entregam ao prazer de interpretar. As estruturas estão cada vez mais a entrar num processo de criação de projectos com duas ou três representações e acaba, às vezes porque não sabemos se podemos contar com a disponibilidade dos actores para voltar a repor. As companhias, como é o nosso caso, estão a sentir algumas dificuldades com esta nova restruturação e definição do sector. Há coisas boas que faltavam como é o caso dos actores passarem a ter segurança social e outros direitos. Agora, ainda vai levar algum tempo a conseguir-se a estabilidade do sector”.

Eduardo Faria é actor e encenador, as duas coisas e uma só: “quando comecei no teatro a minha ideia era apenas ser actor, só queria representar. O resto era outro universo onde não queria estar. Os anos trouxeram outras responsabilidades e tive que me chegar à frente e encenar. No início era doloroso, mas tal como o Pessoa escreveu para a Coca-Cola - primeiro estranha-se, depois entranha-se - foi isso que aconteceu sem nunca perder o prazer de representar. Quando se criou a estrutura profissional tive que fazer ambos os papéis. Na verdade nunca o fiz sozinho, há músicos, iluminação, sons e alguém fora que me ajuda a dirigir e a perceber o encenador que está no palco ocupado pelo actor. Acredito que em palco posso imaginar-me do lado de fora, mas há sempre pormenores que precisamos de ajuda para poder alterar o necessário. É desafiante e aliciante, mas de um risco enorme porque se tiver que receber uma crítica ela não se distribui por mais ninguém”.
 
Como criar um público ou incentivá-lo a ver mais teatro para além da escola: “Defendo a importância de se desenvolver espectáculos para um público familiar porque é à família que nós vamos buscar as nossas referências. Se o pai vai ao teatro e leva o filho mais facilmente este se tornará público no futuro. Se o pai ou a mãe lê, o filho ou a filha tem mais facilidade em ser um leitor, as músicas também vão fazer parte do desenvolvimento e do gosto musical do filho. É nisto que temos que começar a apostar. Não podemos abdicar de levar teatro às escolas, acho importante, mas não devemos pensar que é só dessa forma que estamos a criar um público futuro. O futuro está na árvore que descendemos e construímos”, conclui Eduardo Faria.      

 Por: José Peixoto

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