Voz da Póvoa
 
...

Do velho ao novo

Do velho ao novo

Cultura | 2 Outubro 2025

 

Atravessaram o Atlântico, vindos de Portugal, com a bagagem repleta de lembranças e sonhos, e o coração aberto para o desconhecido.

Na terra escolhida para fincar raízes, o tempo avança em outra cadência, como se o sol tomasse por lição falar devagar, e a chuva, cantar em coro com as cigarras. 

Foi nesse compasso que Ela empeçara a observar, silenciosa e enternecidamente, o renascimento do homem que escolhera para trilhar lado a lado o Caminho.
A casa cheirava a obra e a seiva antiga da terra, no quintal, a grande árvore abatida, que antes oferecia sombra, agora oferecia abrigo. 

Ele, que durante anos vivera curvado às exigências de um mundo que mede talentos pela régua da utilidade imediata, reencontrara, nos braços d’Ela um novo caminho. 

Como aprendiz e mestre ao mesmo tempo, punha suas mãos na madeira. Serrava, lixava, improvisava ferramentas para dar forma às janelas que deixariam a luz entrar, como se o simples gesto de criar molduras fosse também uma forma de abrir horizontes.

Ela O observava intimamente. Seu olhar continha toda a doçura do universo ao perceber que cada lasca retirada trazia de volta algo que estava escondido Nele – a criança que fora silenciada por anos de discursos severos: “isso não dá dinheiro”, “isso não é trabalho de facto”. Entretanto, ali estava ele, debruçado sobre a madeira, com a consciência dos que sabem que criar é o mesmo que ganhar!

Desde que Ele chegara, Ela assistia a esse despertar que tornara-se um verdadeiro milagre cotidiano.

O marido que a vida urbana havia embrulhado em tédio e deveres sem direitos, agora se despia, camada por camada, até restar apenas o homem integral, criativo, essencial. 
Havia uma beleza sagrada em vê-lo transformar caibros antigos em janelas, em imaginar a vida que passaria através delas.

Cada peça de madeira trazia a promessa de um recomeço, a recusa em render-se à hipocrisia que tantas vezes devora os sonhos. Era prova de que os dons não morrem, apenas adormecem, sonhando ser despertados.

Com esse exílio voluntário de um país a outro, eles quebravam, juntos, uma serie de padrões há tanto tempo alimentados, abandonando uma forma de viver que mutila a sensibilidade em nome do pertencimento social. Naquele momento, Ele não trabalhava para ser visto, mas para ver a si próprio. Para conectar-se à própria essência.

Dessa forma, entre troncos, galhos e pregos, entre serragem e pó de madeira, transformava-se não só uma casa, mas uma vida. Uma vida em que o artista tem sucesso. Em que o brincar é uma sabedoria. Em que amar é permitir que o outro seja inteiro, sem medo de ser quem sempre foi.

Na madeira viva das janelas, Ela via gravados os traços da plena felicidade e encontrava o verdadeiro sentido de migrar, que não é apenas mudar de terra, e sim trocar de pele, de olhar, de destino.

Uma vida nova começa com novas atitudes!

Maria Luiza Alba Pombo

partilhar Facebook
Banner Publicitário