Voz da Póvoa
 
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Desenhar a Arquitectura do Admirável

Desenhar a Arquitectura do Admirável

Cultura | 15 Abril 2020

A vontade era ser escultor, mas a vida encarregou-se de estender nos pés o tapete da arquitectura. Não foi o fim, antes o início. Se por um lado podemos encontrar edifícios marcados pela memória das mãos oleiras, por outro o arquitecto modelou pássaros que poisam hoje em todos os olhares na Praça do Almada. Nunca conseguiu ver fronteiras ou diferenças, entre a escultura e a arquitectura, capazes de as separar, porque sempre se moveu num torrão criativo e alheio à sua formação académica.

Álvaro Siza Vieira nasceu em 1933, em Matosinhos. Estudou na Faculdade de Belas Artes do Porto, onde foi professor. Criou em Portugal obras emblemáticas da arquitectura. A sua arte atravessou fronteiras e ergueu-se em obra por imensos países. É hoje o mais premiado dos arquitectos em actividade. As leis podem separar a arte da arquitectura, mas o mestre dos mestres foi reconhecido pelo Governo em 2009, com a Medalha de Mérito Cultural.

“A literatura, a música, o cinema, a pintura, a escultura, têm muito em comum. São artes da mesma família. A literatura e a poesia, tratando-se de afinidades grandes da arquitectura, coisas que a influenciam, sem dúvida que em primeiro lugar está a literatura. No entanto, acho que a poesia tem para um arquitecto um especial interesse, pela prova que dá de capacidade de síntese, mas também pelo rigor e pela ânsia de perfeição que está bem patente num poema. A sua música, o seu conteúdo, coisas que têm muito a ver com arquitectura, sobretudo essa exigência de perfeição e de dizer tudo e criar imagens através de umas linhas”, assume Álvaro Siza Vieira, no final da Conferência de Abertura do Correntes d’Escritas, ‘A Arquitectura e Outras Artes’, numa entrevista partilhada com vários órgãos de comunicação social.

Para o consagrado arquitecto, a arte e a arquitectura não têm uma fronteira: “Há muitas afinidades entre uma coisa e a outra. Historicamente há grandes artistas que fizeram pintura, escultura, como o Miguel Ângelo. Eu até tenho um livro de poemas dele. Claro que hoje não podemos ser tão universais na nossa actividade, porque há regulamentos e burocracias a mais e não tens tempo. O Miguel Ângelo, hoje, para editar um livro de poemas ia ter dificuldade, diziam-lhe que não era poeta, tinha que ser pintor ou escultor. Esta coisa recente de que tudo é especialidade e tudo é compartido, as nossas vidas estão todas partidas aos bocadinhos. Há uma tendência em considerar muros entre as várias actividades, que tem a ver com a vida. Por isso não queiram que eu ache que se pode ser como um artista da renascença. A complexidade é outra. Não é maior nem menor, é diferente”.

Sobre a questão do Tribunal de Contas não ter emitido o visto necessário à adjudicação do projecto do Fórum Eça de Queiroz e Casa do Associativismos Local a Álvaro Siza Vieira, o arquitecto promove uma necessidade: “Um dos problemas é que sem um ‘Brexit’ arquitectonico não há solução. As instruções vêm da União Europeia. É por isso que há estes problemas com o projecto do Fórum Eça de Queiroz. Tem que haver concurso. As câmaras municipais só podem pagar até 20 mil euros por ajuste directo, mas esse valor não dá para projectar uma cabana. Se for até 75 mil euros tem que haver um concurso entre três arquitectos, os honorários de uma casinha. Acima deste valor tem que haver um concurso público e um dos critérios principais é o projecto mais barato. Depois, as obras são entregues ao empreiteiro que ganhou o concurso com o preço mais baixo e o que acontece muitas vezes é receber a primeira tranche, fazer umas cócegas durante uns meses e depois abrir falência. A fase seguinte será abrir outra empresa. Se é obra pública, então é preciso abrir outro concurso, que em geral leva um ano ou mais e os preços sobem. Portanto, estas medidas que vêm da União Europeia estão a provocar uma forte despesa pública no nosso país e nos outros países também”.

O reconhecido arquitecto esclarece que não são os concursos que o assustam: “Não tenho medo de fazer concursos, uns ganham-se e outros perdem-se. Depende sempre de nós próprios e de quem aprecia e dá o parecer. Agora, os concursos nas condições em que são feitos, não quero, não faço. Primeiro, porque tive experiências que custaram, na altura, um bocado. Depois a gente esquece isso. Nos concursos em Portugal há a tal cláusula, onde um dos critérios é o projecto com orçamento mais barato. Se o projecto é feito com empenho, com sentido de responsabilidade e consciente da exigência que há, com uma cláusula assim eu não brinco. Por outro lado, também tenho a experiência de ganhar concursos que depois não são executados”.

Para Álvaro Siza Vieira, o único país onde se pode trabalhar actualmente na Europa é na Suíça: “Não dá para todos. Fiz dois projectos na Suíça e foi uma maravilha fazê-los. A realidade é que a arquitectura não interessa a ninguém. A arquitectura a que chamamos moderna singrou, teve êxito, ganhou prestígio, porque um dos propósitos declarados era a qualidade da arquitectura para todos. Muita habitação económica na Alemanha, na Áustria, na Bélgica, na Holanda, ficou conhecida por essa exigência de trabalho para o grande número. A arquitectura, hoje, é considerada um capricho inútil de alguma gente que tem dinheiro e se dá a caprichos. Não interessa absolutamente nada, é uma inutilidade, uma velharia, uma coisa arqueológica. Este é o entendimento sobre a arquitectura actual. Não há ponta de exagero no que estou a dizer. O estado da arquitectura em Portugal e na Europa, excepto na Suíça, vive na agonia”.

Há sempre um projecto arquitectónico que ficou por fazer, mas Álvaro Siza Vieira aceita isso com naturalidade: “Em geral fiz, mas depois não se executaram. Não tenho essa angústia ou desgosto. Fui fazendo aquilo para que fui convidado ou entrei num concurso que me interessava. Nunca disse: ‘gostava tanto de fazer’. O importante é fazer. Há edifícios públicos que têm um grande desempenho na cidade, casas particulares, monumentos. E não pode fazer uma casinha, que é um elemento repetitivo na cidade, uma célula, sem ter feito um edifício de outra escala, de grande escala. A gente tem que experimentar um e outro. Interessa-me ter muitos tipos de edifícios”.

Álvaro Siza Vieira diz que não é a paixão nem a inspiração que o move: “Primeiro, tenho que ganhar a vida e, segundo, gosto de arquitectura e de fazer arquitectura. Não é uma paixão, paixão tem-se por gente. Fazer aquilo que se gosta é muito importante para o bem-estar da pessoa. Não há nada pior do que ter um trabalho que não se gosta nada, mas tem que se fazer para ganhar a vida. Eu faço arquitectura porque gosto muito. Dá-me prazer, entusiasma-me, mas também dá muitas dores de cabeça”.


José Peixoto

 

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