
Vi-te passar na Praça do Almada, andar apressado, mãos nos bolsos, como se as protegesses sempre. Foi a última vez. Sei que éramos irmãos nas despedidas, nunca gostámos delas. O amanhã também era uma coisa do passado. Até qualquer dia ficava sempre melhor aos dois, mas bem que desta vez podias dizer que estavas de partida para o infinito. Sabes que ficámos de pôr a conversa em dia sobre as leituras em papel. Depois de um telefonema ficaste invisível. Agora, guardo muitas palavras no ouvido e outras tantas no olhar.
Contaram-me que Isac Oliveira Romero Gonzalez deixou de ser visto no dia 6 de Novembro, quase a completar 83 anos. Sei que o riso se fixava no teu entendimento. “Sorrimos sempre felizes ou carregados de tristeza, somos feitos de soluços, mas há o vinho, a alegria dos sabores e saberes”.
No teu refúgio onde os acasos se transformavam em ocasos dizias que tinhas “uma mão palerma, foge do risco. A outra arrisca sempre o que recebe da cabeça, mesmo que interrompa uma conversa. Os amigos já se habituaram ao outro que tenho, que me acompanha e nunca me larga. Podia usar uma linguagem cheia de cores e de musas inspiradoras, mas a travessia não desmerece ninguém. O nosso corpo é um cavalete e os dedos são os primeiros pinceis”.
Aos quadros desejavas vida longa, saíam espremidos do corpo: “Eu dei sempre o litro em tudo e devia ter cobrado algum. Vendi quadros, naturalmente, mas nunca vendi explicações ou opiniões. Aos amigos cobra-se em amizade e tolerância. Creio que também a tiveram comigo. Sempre fomos poucos a surrealizar, mas muitos a levar por tabela. Criticar o erro consciente não nos dá a razão, mas pelo menos pode sempre inquietar o outro.
Os artistas usam a liberdade para extremar posições, “é bom que assim seja, o contrário são algemas e imposições terapêuticas. Ganhamos isto com o sangue dos outros, como o do pintor Dias Coelho ou da Catarina Eufémia, assassinados pela polícia dos brandos costumes salazaristas. Abril escancarou as portas e nós por excesso ou por demência e conjugal adormecimento, deixámos que nos trancassem do lado de fora. Ser livre é poder entrar e sair, abraçar o outro ou recolher-se em si. Um pássaro engaiolado não precisa das asas, mas sem elas a nossa vaidade perde a encomenda”.
É verdade que há dias que acordas com um pássaro na cabeça? “É, ou melhor, pelo menos com o cantar desse pássaro, e colado ao canto uma vontade enorme de voar. Se por um lado temos uma imaginação capaz, por outro somos muito limitados. Às vezes, preferia pensar só, não imaginar, não ter visões e ser pássaro para voar por aí, ver o mundo de outro ângulo, de outra perspectiva. Sei lá, subir, subir, subir até onde as asas me cansassem. Depois era só cair, cair, cair até repousar numa nuvem qualquer, que me amparasse da hesitação, dos medos. Outras vezes, sinto falta de abraços que se envolvem no corpo, não sei se por reconciliação ou despedida, afecto ou paixão, como escreveu Tolentino, sei que, mesmo uma última vez, nos fazem falta. É por isso que não há nada melhor que desarrumar a solidão. É aí que os amigos entram”.
Conversei tantas vezes contigo que encontrei no sótão da memória as tuas palavras, mesmo que não tenham sido exactamente estas. Se inventei é cá entre nós, foi só para organizar as tuas reflexões, agora que já quase não pintavas. Mas escuta, há um consentimento descontente, um desalinho a despertar nos fragmentos de uma ousadia, há esperança sempre que o medo nos desafia. O exercício do incontestável pode ser questionável. O ruído corrói por dentro, antecipa-se ao silêncio da indiferença. É preciso desabitar todos os ruídos sem nexo. Estou lúcido e no entanto, sigo humano, despeço-me de ti. A tua espécie e a tua obra são úteis à reparação do Mundo.
por: José Peixoto