Voz da Póvoa
 
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Da opressão à Luz da Liberdade no velho Liceu Nacional

Da opressão à Luz da Liberdade no velho Liceu Nacional

Cultura | 25 Abril 2024

 

Corria o ano de 1972. Numa das paredes em volta do campo de basquetebol, lia-se a vermelho ou a preto, Rua com o reitor”, “Ribeiro dos Santos será vingado”. Era manhã cedo quando ali arribei, nos rostos espelhava-se um sinal de catástrofe, queríamos, a toda a força, saber quem seria esse senhor. Alguém nos disse “um estudante em Lisboa morto pela pide“. O que significava que havia entre nós, quem soubesse mais! A tensão estudantil crescia em todo o País com sucessivas repreensões e expulsões a estudantes. Em Março de 1973 dá-se a suspensão no nosso liceu do estudante José Barnabé Maia Xavier a frequentar o 4º ano, “suspenso preventivamente, por tempo indeterminado”, lia-se, num papel (nota) que se encontrava dentro do “Livro de Ponto”. Sabíamos que o Barnabé tinha tido uma discussão com o professor de religião e moral à qual toda a turma assistiu, a propósito de uma frase de Nietzsche que ele tinha escrito no quadro antes de o docente entrar na sala. Não mais o Barnabé pôs os pés nas aulas e todos perguntavam, em vez de, “mas o que é que tem o Barnabé que é diferente dos outros”, o porquê de ter sido suspenso por tempo indeterminado. Ouviu-se falar que teria sido chamado à reitoria e ao conselho disciplinar e aí “apertado”. Mais tarde dizia-se que a polícia, a pide, o teria prendido e solto, submetidas as suas saídas da casa dos pais e os seus atos a uma apertada vigilância policial, ou seja, pidesca. Todos conheciam o Zé Barnabé, alto, cabelo preto, olhos um pouco encovados, esguio, com orelhas e ouvidos de saberem ouvir, para nós rapazes um intelectual amigo, solidário, conversador que muito nos questionava sobre a Vida, não sobre a vidinha, para lá de um grande artista de banda desenhada. Ainda hoje sinto um arrepio na espinha ao falar dele. Permanece como uma brutal recordação viva, à qual ainda não se fez inteira justiça. O certo é que todos receberam a notícia de que o nosso querido condiscípulo apareceu afogado no Rio Ave. Numa zona do rio bem conhecida dele, pela existência de poços e de grandes redemoinhos de água e areia. Logo nos suscitou as dúvidas. Como é que um nadador exímio como ele, conhecedor como poucos daquele rio, foi para tal sítio nadar? Logo corre entre a malta “eh pá ele suicidou-se“, outros, “não aguentou as cinturadas no lombo” que, ao que diziam, levava a coberto das telhas segundo colegas vila-condenses, que chegaram a confirmar também a existência de um carro preto que rondava a casa dos pais e a de uma sua amiga mais velha com a qual habitualmente confidenciava, a Ana Santos, na altura a frequentar o 7º ano. O certo, é que o nosso querido Zé Barnabé morreu no dia 9 de Agosto de 1973, enquanto num dos jornais diários do Porto, penso que no Jornal de Notícias, a propósito da sua morte noticiava mais ou menos isto: apareceu afogado no Rio Ave, em Vila do Conde José Barnabé Maia Xavier, aluno que frequentava o 4º ano dos liceus e que no próximo ano, iria frequentar o curso complementar, ou seja o 6º e 7º anos. Isto nada mais era que o branquear da repressão a que o sujeitaram os da famigerada opressão humana e intelectual. E perdemos um jovem (“tão jovem como tu, minha alegria”) tão promissor intelectual que adoraria ter visto a luz da Liberdade que se avizinhava, tão funda era a sua noite, coberta por uma laje no cemitério de Vila do Conde.

Assim era, meus queridos estudantes, professores, e auxiliares de Escola, amigos e amigas, aquele tempo negro em que vivíamos amordaçados por um regime ditatorial, negacionista da mais nobre das liberdades, a de poder falar, pensar, e questionar a Vida! Ainda hoje, choro a morte do Barnabé e só espero que a serpente que começa a morder a cauda não chegue a ser regime. Tudo pela defesa da Democracia, no respeito pela dignidade humana e dos seus valores de Liberdade, igualdade e fraternidade.

Mas Abril floresceu naquele velho Liceu Nacional. Recordo-me, perfeitamente, daquela manhã de 25, em que a Professora de Inglês, aliás muito bonita, nos ter dito “está a haver uma revolução, na rádio só se fala de spínolas”- assim entendi - e de alguém, do naipe de funcionários, dizer, “Todos para casa está a haver uma revolução“. Também não sabia quem era “spínolas”, o mesmo se passou quando Salazar morreu, perguntei a minha mãe “e agora quem vai ser o salazar? ” Não haja dúvidas, o nome dos ditadores torna-se um cargo, um posto! Nessa noite o meu irmão mais velho, o Orindo, regressado do Porto a casa, confirma em família o golpe de estado, o caminho para a liberdade e o fim da guerra no ultramar. Eu, de olhos espantados, e cheio de versos no corpo, desde o tempo do jornal de parede dos alunos do Liceu, começava a compor os primeiros poemas numa exortação à liberdade. Tudo, enquanto no Liceu se faziam Reuniões Gerais de Alunos convictos das suas forças na construção do Portugal livre! Destacaram-se nestas as intervenções, entre outros, dos estudantes Álvaro Pinto Lopes, José Cerejo, Margarida Santos, do Bacelos, bem como do professor Orlando Taipa, discutindo-se vários assuntos como a criação de uma Comissão Associativa de Alunos e a demissão do reitor, que deveria ser imediata, nas palavras do referido Álvaro.

Cantava-se a Grândola, a Gaivota, a Pedra Filosofal, e uma Comissão Administrativa tomava as rédeas da governação, em liberdade, do Liceu Nacional da Póvoa de Varzim. Era seu Presidente o agora Professor Doutor António do Carmo Reis, que ao tempo publicou o livro “Introdução à política” e que no seu introito escreveu “ Sempre que ressoarem pelas charnecas do Alentejo e pelas quebradas de Trás-Os-Montes os acordes magníficos de Grândola Vila Morena, saibam os nossos filhos (e eu, agora, acrescento, e netos) que foram seus pais (e, agora, acrescento, e avós) que lhes restituíram um Portugal Livre e Independente“. E, os versos, continuaram a crescer dentro de mim, e surge o meu primeiro formato impresso, que tive o cuidado de lhe chamar “gestação poética”, com prefácio do Prof. Carmo Reis, referindo este, na nota introdutória, “cada verso em palavra feito, cada poema como dardo que o fogo esculpe” à venda na Livraria Minerva, a mesma onde tinha comprado o Só do António Nobre.

Neste mesmo dia 25 recordo que um grupo de estudantes, movidos por outros politicamente mais esclarecidos, deslocaram-se ao Quartel Militar da Póvoa e ouviram o então Capitão Bacelar Ferreira falar-lhes do movimento militar em curso “com vista à libertação da Pátria”. Daqui seguiram para a Praça do Almada, manifestando-se junto ao Edifício da Câmara Municipal.

Tudo sem esquecer as reuniões clandestinas que nos contaram serem feitas antes do 25 de Abril de 1974, em lugares escondidos da Póvoa, como nas faladas pedreiras, na zona do atual Hospital da Luz e ainda as notícias da Rádio Voz da Argélia/ Rádio Voz da Liberdade, que operava a partir de Argel, em português, na voz de portugueses exilados, sendo que o nosso querido Bibliotecário Manuel Lopes, grande opositor à ditadura, levava consigo malta mais nova, entre eles o hoje escritor José Ventura, o orquidófilo José Costa, o poeta Armando Silva Carvalho, ao tempo autor do livro “ O Suor do Tédio”, o Rui Batista e outros, para o areal da Póvoa, à noite, para ouvirem esta estação de rádio, fugindo, assim, ao controle da Pide. Aliás, José Ventura, no seu romance “A Busca “, Edições Caminho, contempla este episódio.

Após o vitorioso golpe de estado, muito por ação, do nosso Cabo Apontador, José Alves da Costa, de Balasar, se ter recusado a disparar ao ver o seu alferes ser detido pela polícia militar, desobedecendo às ordens do Brigadeiro Junqueiro dos Reis, e obedecendo ao lenço do Capitão Maia, seguiram-se, naturalmente, os “Cantos Livres” com guitarras às costas a pedalar a bicicleta pelas aldeias da Póvoa, dando apoio a diversas associações desportivas e culturais que se formaram como a fundação da ARCA (Associação Recreativa e Cultural de Argivai), sob o impulso do Capitão Armindo Teixeira. Foi o tempo festivo do grande palco do Ginásio do Liceu, com guitarristas excecionais como António Ramalho e Luís Ezequiel (violas), ouvia-se “Ó Senhora Guida veja a sua vida”, “O meu amigo está preso” do Tino Flores, a Pedra Filosofal do António Gedeão, Cantigas do Zeca, do Adriano, do Fanhais (o célebre “Vemos, ouvimos e lemos” de Sophia), Zé Mário Branco, do Luís Cília, e tantos outros…surge o conjunto Improviso com António Ramalho (viola Baixo) Ivo Flores (guitarra elétrica), Jony Figueiredo (Jorge Figueiredo), flauta e canto, Nequinha (bateria) Luís Ezequiel, Miguel e Mário (voz). Lembro o grupo que criei e no qual ativamente participei, Grupo Poema Vitae, dizendo poemas de Alexandre O´Neill, José Gomes Ferreira, Manuel da Fonseca, Cesariny, António Maria Lisboa, de viola em punho juntando-me às vozes de Ernestina Carvalho, Maria Nazaré e os Mirandas, Pedro e António Manuel na percussão, e ainda, Carlos Coelho à viola em vários palcos deste litoral norte.

Tudo vozes, poéticas do Canto Livre na anunciação de um País Novo que continuamente se move e se renova num regime democrático, sempre em constante construção na renúncia à ditadura e à opressão.

Viva Portugal!

Viva os sempre verdes anos!

 

Aurelino Costa,

Abril de 2024.

 

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