Voz da Póvoa
 
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Correntes d’Escrita ou o Exercício da Criação

Correntes d’Escrita ou o Exercício da Criação

Cultura | 24 Fevereiro 2022

Há uma corrente que ganhou elos a cada Fevereiro com novas escritas e escritores pelo inteiro. Há um evento que se reinventa a cada ano, como se o igual não existisse e o raro se semeasse. Há um encontro premeditado que nos oferece ao correntio das palavras e das escritas o lugar da surpresa. O Correntes d’Escritas apresenta-se aos 23 anos para nos falar de eternidades, afinidades e liberdades. A Póvoa de Varzim, entre 22 e 26 de Fevereiro, é o lugar onde se celebra a literatura. 
   
“O Correntes começou por ser uma aventura e quando é assim tudo pode acontecer. O improvável torna-se provável e é nessa medida que existe o Correntes d’Escritas. Este evento que todos os anos pensamos que sabemos o que e vai acontecer, mas acabamos sempre surpreendidos pelo que vai acontecendo. Há surpresas em todas as mesas, conversas com escritores, idas às escolas, há sempre histórias diferentes, momentos que nos ficam na retina e na memória durante muito tempo e outros que nunca mais esquecemos. Há os afectos que se encontram e reencontram e as cumplicidades que se vão criando. O Correntes é isto tudo, mas também literatura, cinema, pintura, escultura, fotografia, todas as artes se reúnem aqui. É por isso que vamos para este evento, não como algo que se vai repetir, mas como algo que é irrepetível. Ou seja, no próximo ano não será o mesmo. Penso que é esta a magia do Correntes d’Escritas”, enaltece Luís Diamantino. 

Embora o Correntes d’Escritas tenha já ultrapassado duas décadas, para o Vice-presidente da Câmara e vereador da Cultura, continua a rejuvenescer-se: “Quem participa reconhece isso. Os nomes repetem-se, mas não é o mesmo escritor que está cá no ano seguinte. Esse escritor já se renovou. O Ondjaki que veio no início do Correntes não é o Ondjaki que vem hoje. Este ano temos, como habitualmente, escritores que passaram por aqui muito jovens. Sendo um dos objectivos, não criamos só leitores com a promoção da leitura e do livro, mas também escritores que abriram caminhos a partir da sua passagem pelo evento que promovemos. Fazemos isso pela literatura portuguesa e espanhola, mas também africana. No início, tivemos a Paulina Chiziane, umas duas ou três vezes, mas também o Mia Couto, hoje são ambos Prémio Camões”.

Rubem Fonseca, que entre outros venceu o Prémio Camões e o Prémio Casino da Póvoa, é postumamente homenageado pela Revista Correntes d’Escritas: “Há uma palavra que me persegue pela vida fora, que parece estar a cair em desuso ou a sair do dicionário, mas sempre que tenho oportunidade, faço questão de a dizer aos jovens. Essa palavra chama-se Gratidão. As pessoas não estão acostumadas a ser gratas. Acham que a gratidão tem a ver com subserviência, mas não é nada disso. Gratidão é reconhecer que, nós somos o que somos graças a alguém que nos antecedeu. A juventude parece querer dizer que tudo o que foi feito pelos antepassados, no caso do ambiente, foi poluir e destruir a terra. Eu não entendo as coisas assim, temos que as saber contextualizar. Não podemos ver à luz dos dias que vivemos aquilo que fizemos há 100 anos. Era outro tempo. Agora, temos uma cultura e conhecimento que não tínhamos. Agora, criticamos os prédios altos na Póvoa, mas quando construíram o edifício Nova Póvoa, com 28 andares, os poveiros andavam orgulhosos com o prédio mais alto da Península Ibérica. Agora, é uma vergonha. Por vezes, pode ser perigoso descontextualizar as coisas. Entendo que estamos a viver numa época em que nada perdura, que é tudo muito frágil, de usar e deitar fora. É o consumismo, cansam-se facilmente do que têm”.

Para Luís Diamantino, a literatura não tem esse cansaço: “Já li uma imensidão de livros. Dos clássicos reli, entre outros, Camilo de Castelo Branco, Eça de Queiroz, Miguel Torga, Júlio Dinis, e em cada leitura me pareceu um novo livro, uma nova estória, uma outra compreensão. Tem a ver com o que sou e o que eu era, a minha forma de encarar o mundo em cada época da minha vida. Ou seja, o livro renova-se tal como o leitor e o escritor. A literatura nunca está acabada”.

A Escrita é a Arte de Transformar a Palavra 

Na imensa maioria os temas das mesas foram retirados dos livros, desta vez saíram dos títulos de canções imortalizadas: “Numa época em que estamos tão enclausurados em nós, de repente ter uma música que nos anima, nos arrasta para a memória, não só a melodia como a letra, tantas vezes carregada de poesia e de vozes únicas. Estamos a falar de literatura. O ‘Samba da Utopia’ de Jonathan, os ‘Verdes anos’ de Carlos Paredes ou “Sodade” de Cesária Évora, são músicas e canções que marcam, que deixam rasto e que nos chamam para sentimentos profundos da alma do povo português e de todos os falantes da língua de Camões. Achamos que seria algo diferenciador e surpreendente, ouvir a música e falar sobre essa canção, sendo que cada escritor contará a sua estória. Acredito que a literatura e a música tenham ocupado muito do nosso tempo neste distanciamento dos afectos”.

Quanto às exposições, são para Luís Diamantino uma outra forma de arte no Correntes: “Vamos ter várias e em lugares distintos, de fotografia, pintura e escultura. A exposição do Valter Hugo Mãe, um amigo, que é escritor e artista plástico, surge quando um amigo comum, o Tomás Carneiro, também envolvido no mundo da cultura e da arte, nos fez essa proposta. São desenhos que o Valter fez durante a pandemia. Trata-se de um percurso de incerteza. Temos também o Hélder Carvalho a expor na Galeria Ortopóvoa. Lembramos que é o escultor da estátua do Rocha Peixoto, que está frente à Biblioteca e da estátua do Nando Gonçalves, junto à praia. É um regresso ao Correntes d’Escrita, um lugar onde, penso, foi feliz”.

Há mais de meia centena de convidados no encontro literário: “Vamos ter uma jovem que venceu o prémio Correntes d’Escritas/Papelaria Locus, que depois disso já editou e vai estar entre nós a apresentar o seu livro. Isto também é gratificante para nós porque abrimos portas ao sonho. Numa parceria com a Porto Editora, temos agora o prémio Luis Sepúlveda, uma homenagem que fazemos ao escritor chileno que tantas vezes marcou presença. Um grande amigo da Póvoa e destas correntes”.

Passo a passo, com a segurança de quem sabe o caminho, o Correntes vai dobrar a presença nas freguesias, revela Luís Diamantino: “Este ano, vamos a quatro freguesias e para o ano pensamos ter mais duas. Começámos em Navais e Rates, e este ano vamos estar também na Estela e Laúndos. Ou seja, caminhando chegaremos a todas. Queremos criar uma rede que chame até nós aqueles que vivem nas freguesias. Ou seja, para ter acesso ao Correntes d’Escritas não tenho necessariamente que ir à Póvoa, porque há uma mesa na minha freguesia. Às escolas vamos levar vários escritores para conversar com os alunos e há sempre algum que fica com o bichinho”.

As surpresas não se programam, acontecem: “O Correntes d’Escritas seja qual for a sua programação é sempre uma surpresa. Neste momento nem sequer podemos criar grandes aglomerados de pessoas, temos que nos limitar aos espaços das salas. A mensagem é de alguém que está a recuperar de uma convalescença. Queremos que nos visitem, encham as salas, mas temos regras. As pessoas têm que fazer marcação e levantar o bilhete gratuito até duas horas antes da sessão que quer ver ou assistir”.

A Novidade é Programar na Incerteza o Correntes d’Escritas

O Correntes começa quando acaba: “Este ano foi diferente porque não sabíamos o que iria acontecer. Planificar a longo prazo é complicado porque não podemos convidar gente que está fora do país devido à pandemia. Há desistências à última hora. Avançámos perto do final do ano para podermos hoje estar aqui, mas podia acontecer não podermos realizar nestes moldes presenciais”, reconhece Luís Diamantino.

 No encontro de escritores de expressão Ibérica não há estrelas, há pensadores: “Mesmo quando estava cá o Eduardo Prado Coelho ou o Eduardo Lourenço, pessoa que todos tratavam por professor, também se diluía neste meio literário. Era um igual entre os outros. O que destaco, sempre, são os leitores que enchem o Garrett e outras salas, é isso que mexe com quem realiza. O facto de termos feito no ano passado o Correntes à distância provou que nos faltou esta proximidade, olhos nos olhos, uma cumplicidade que sempre existiu desde a primeira edição na Biblioteca. Destaco também as correntes em rede, a rede das bibliotecas escolares e a formação de uma centena de professores, que pelo terceiro ano lhes é dada pelos escritores que vêm à Póvoa”.

Se por um lado, como leitores assistimos às mesas e falamos um pouco com as pessoas, quem organiza acaba por criar amizades, mas depois chega-nos o sentido da perda. Alguém que parte deixando-nos apenas palavras escritas: “É uma pessoa de família que nos falta, é um abraço que se solta ou se eterniza na saudade. Não esqueço o último abraço que dei ao Sepúlveda na noite de sábado, rosto no rosto e me disse - para o ano estou cá – para o ano espero por ti – voltou em livro e em saudade”.

Na Póvoa de Varzim foi criado o vício da construção de futuros músicos ou escritores, uma cultura que não está de passagem, que nos habita. “No último evento que fizemos da Escola de Música e dos 33 anos do Coral Ensaio no Garrett, o espectáculo chamava-se ‘Fantasia’. Estavam professores, alunos que já passaram por esta e pela escola superior de música, como o Raúl Costa, o Francisco Graça, o Natanael, alunos excepcionais. A sala estava cheia e ouviu-me dizer – já imaginaram o mundo sem fantasia? Já imaginaram o mundo sem música? É difícil imaginar. Já imaginaram a Póvoa de Varzim sem a Escola de Música? Para muitos de nós não é difícil imaginar porque vivemos demasiado tempo sem ela – se quisermos recuar no tempo, quem é que tinha formação em música? Pouca gente. Neste momento, temos muitas pessoas a fazer música desde maestros, executantes e compositores”.
 
E o vereador da Cultura prossegue: “O palco do Garrett encheu-se de pessoas extraordinárias. Senti um orgulho tremendo naquele dia e todos temos a certeza que já não conseguimos viver sem a Escola de Música, sem o trabalho excepcional que é feito. Na Póvoa damos valor àquilo que é nosso. É por isso que o Raúl da Costa ou a Raquel Camarinha vão ao Festival de Música, é por isso que o professor Rui Silva participa em vários espectáculos de Ópera que organizamos na Póvoa. Grande parte dos professores da Escola de Música foram lá alunos. Damos valor àquilo que é nosso e, regra geral, não se vê isso. Orgulhamo-nos de ter esta construção criativa”.
 
Luís Diamantino acumula os pelouros da Cultura e da Educação, uma partilha de experiências que em cada mandato se repete: “Antes de assumir os dois pelouros colaborava com o Dr. Cancela, passei a ter uma relação muito clara com as escolas, com os professores, com as associações de pais, só assim é que se consegue trabalhar, em entreajuda. O mesmo acontece na Cultura com as associações culturais. Cultura é tudo o que nos rodeia, desde a música erudita que temos no Festival de Música ao folclore que também se reúne em Festivais. Cultura é também navegar na Lancha Poveira até A Guarda. Este é um trabalho pela disseminação da cultura. O que estamos a fazer no Correntes d’Escritas é educação para a cultura. A ideia é sempre atingir um estádio mais elevado, sendo assim acho que uma e outra se completam”. E conclui: “Seja qual for o vereador da Cultura que cá esteja, sente-se obrigado a realizar este evento literário. Como não consigo imaginar a Póvoa sem a Escola de Música, o mesmo acontece com o Correntes d’Escritas”.

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