Voz da Póvoa
 
...

Com paixão

Com paixão

Cultura | 15 Abril 2021

Era uma tarde cálida, sem vento, na Póvoa. Estirados na praia em duas cadeiras reclináveis, dois amigos aproveitavam o que de melhor, tirando as pessoas, há no mundo. Mar e sol.

Ega virou-se para Carlos e, com preguiçoso desplante, proclamou:
«Uma pessoa séria tem de viver com paixão, toda a gente sabe isso.»

Carlos sabia que Ega queria discussão. E, bom amigo, deu-lha:
«Uma pessoa séria tem de ter compaixão, dizem os mais sábios.»

Ega, sempre dandy, torceu o nariz:
«A compaixão é fraqueza. A paixão é tudo.»

Carlos sabia que o amigo estava a fazer pirraça. Mas um bom duelo nunca se recusa, sobretudo a um bom amigo:
«A paixão é que é fraqueza. A compaixão é tudo.»

Ega acusou o toque. Ficou um pedaço cismando. Como responder? Como ripostar? Ah, encontrei, disse o seu sorriso malandro:
«A compaixão é um passeio dos tristes. É a mais mísera das emoções. É o erotismo de quem já não tem erotismo. É, a pretexto da mais fervorosa das caridades, o mais vil dos egoísmos.»

Carlos não se deixou intimidar por esta rajada argumentativa. Até por saber que, se pudesse, Ega daria, numa só frase, tiro certeiro. Ser prolixo era mostrar fraqueza: sinal de que ainda não tínhamos apurado a pontaria. Por isso mesmo, Carlos foi malandramente seco na resposta:
«Compaixão é, apenas, compreender a paixão do outro. Tens noção disso, certo, meu bom Ega?»

Ega tropeçou – ou, se estivesse de pé, tropeçaria. Caramba, Carlos estava em forma, o seu novo amor com aquela Maria Eduarda tinha-lhe apurado os sentidos e não só: também aos músculos de sinapses e neurónios. Como um pugilista que acabou de receber um soco nos queixos, Ega passou do ataque à titubeante defesa:
«Desculpa lá, mas compreender a paixão do outro é o quê, senão uma confissão de impotência? Oh, sou tão fraquinho, como não consigo ter paixão por nada, deixa-me cá compreender as emoções alheias?»

Carlos aqui, com a má fé do amigo, quase se irritou:
«A paixão do outro não tem de ser amorosa, Ega. Estás a misturar alhos com bugalhos – ou, pior, a Póvoa de Varzim com a Vila do Conde. Ter compaixão significa entender o que move o outro. O que dá ao outro razões para viver. Como pensa o outro. Entendes?»

Ega, intimamente satisfeito (mas também assustado) por ter conseguido picar o amigo, ripostou:
«E o que me interessa o que pensa o outro? Sabes que, para mim, mais ninguém pensa senão eu. Ou tu, meu caro Carlos, pensavas antes dessa paixão tua pela Maria Eduarda, que ainda vai acabar mal.»

«Ega, Ega. A ver se entendes”, rosnou Carlos. «O que os outros pensam e sentem é essencial. Por isso mesmo lemos romances. Porque os romances mostram que, na vida, não há só um ponto de vista.»

Ega aí foi mesmo maldoso:
«Estás a insinuar que, quando ignoramos a voz alheia para dar voz apenas à nossa voz, estamos a ser egoístas e mesquinhos? Meu pobre Carlos, o que tens tu contra a poesia?!»

Carlos ficou furibundo. Se pudesse, naquele momento, teria talvez recambiado o amigo para um vestíbulo no Ramalhete, e escrito uma carta a Eça a exigir-lhe, sob risco de deixar de financiar a escrita do novo romance, que eliminasse o Ega das melhores cenas d’Os Maias.

Ega leu isso nos olhos do amigo. E viu que Carlos no fundo tinha razão, pois por isso mesmo – a compaixão, o entender a paixão alheia, percebera Ega que o amigo já não estava a jogar a feijões. Sim, a compaixão era isso: perceber o que motiva o outro, pormo-nos no lugar do outro.

E, não vamos esconder, Ega terá também tido algum receio da influência de Carlos junto de Eça. Afinal, se
Carlos e Maria Eduarda eram em teoria os protagonistas da história, na prática a ele, Ega, caberiam as melhores tiradas. E seria chato que, por um capricho, por uma discussão palerma, ele fosse varrido, corrido, apagado daquele que, um século depois, viria a ser considerado o mais belo romance da literatura portuguesa. Até teria, oh glória suprema, direito a uma análise estrutural por um lente de Coimbra.

Por isso, Ega, conciliador, terno, conciliou ternamente:  
«Viver com paixão ou ter compaixão? Na verdade, estimado Carlos, queridos leitores da Voz da Póvoa, é uma falsa questão. Na realidade, paixão e compaixão são duas faces da mesma moeda. A paixão pela vida é essencial, ela é da vida o sal. Já a compaixão, a compreensão do outro, o amor ao outro, que outra coisa é senão o nosso encontro com essa forma de harmonia com o cosmos a que, à falta de melhor nome, chamamos Deus?»

Rui Zink - Escritor, Professor
 

 

partilhar Facebook
Banner Publicitário