Voz da Póvoa
 
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Cangiante: Entre a suspensão e o gesto

Cangiante: Entre a suspensão e o gesto

Cultura | 8 Dezembro 2025

 

Há percursos artísticos que se constroem com a lentidão das marés. O de Ana Romero (1971) é feito dessa cadência: da infância em Moçambique, onde a luz se imprime como primeira memória; do regresso à Póvoa de Varzim, aos seis anos; e da convivência íntima com o pai, Isac Romero, pintor que deixou marca indelével na cultura poveira e na própria Filantrópica.

Dessa convivência nasce não apenas a escolha das Artes Plásticas, mas um entendimento ético da criação: o rigor, a disciplina, a entrega silenciosa ao gesto.

O percurso pelas Humanidades e a posterior formação artística conduziram-na também ao ensino, onde o diálogo com os alunos sedimentou uma prática reflexiva. A par da docência, manteve sempre o trabalho pessoal de pintura e desenho, entendido como espaço de interioridade – lugar de apaziguamento e, simultaneamente, de inquietação.

A sua obra percorreu Nova Deli, Londres e Brasil, revelando um caminho de maturação visual e poética.

Cangiante – A interrupção necessária: No Renascimento italiano, Cangiante designava a técnica que substituía a gradação suave pela mudança súbita de cor – um deslocamento mais próximo da revelação do que da continuidade. Para Ana Romero, este termo tornou-se imagem e metáfora.

Ao longo de um percurso, a prática tende a fixar-se em gestos repetidos. O que antes era descoberta pode tornar-se automatismo. É nesse ponto limiar que se torna necessária uma suspensão – uma epoché, no sentido dado pelos céticos gregos: uma interrupção que não é desistência, mas abertura.

A artista aproxima esse gesto de suspensão da busca pela ataraxia – a serenidade procurada por Epicuro e retomada por estoicos como Sêneca e Epicteto. Os antigos lembravam-nos que a vida – tal como o processo criativo – é feita de ritmos desiguais, de avanços e recuos, de sombras e de luz. A sabedoria reside não em evitar os altos e baixos, mas em compreender o movimento que os une.

Cangiante emerge dessa reflexão. As obras aqui reunidas revelam não apenas uma mudança técnica, mas uma mudança interior: uma reconfiguração do olhar. A cor abandona graduações previsíveis e arrisca encontros inesperados; a composição deixa de procurar segurança para procurar sentido. Há uma clareza nova, mas também uma vulnerabilidade assumida: a coragem de interromper para poder recomeçar.

A memória como fundamento: A exposição nasce num momento marcado pela perda do pai, Isac Romero. Não se trata de uma homenagem directa, mas de um eco. A ausência torna-se presença, atravessa o gesto, orienta-o com delicadeza. É memória e impulso. A Filantrópica lembra com gratidão o artista, o cooperador e o amigo: alguém que fez da arte um lugar de convivência e generosidade. A sua influência permanece na obra da Ana – não como repetição, mas como continuidade transformada. Como um Cangiante: mudança que conserva.

Conclusão: Cangiante é uma afirmação de maturidade: um exercício de suspensão, atenção e renascimento. É o instante em que a cor muda – e, com ela, muda também quem olha.

A inauguração da Exposição “Cangiante” de Ana Romero pensada há dois anos aconteceu no dia 29 de Novembro, na galeria da Cooperativa de Cultura “A Filantrópica”, que pode visitar até 6 de Janeiro de 2026.

 

Por: Armando Bento

Fotos: Rui Sousa

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