Pela mão das Correntes, Camilo Castelo Branco regressa à Póvoa de Varzim a propósito dos duzentos anos do seu nascimento.
Nos últimos anos da sua vida, Camilo passava grandes temporadas na Póvoa. Hospedava-se muitas vezes no Hotel Luso-Brasileiro. Chegou mesmo a alugar casa no Passeio Alegre e na Rua da Junqueira.
Procurava a Póvoa por recomendação médica, pelo convívio com várias figuras ilustres (o Juiz José Maria Teixeira de Queiroz pai de Eça, o poeta Gomes de Amorim, o visconde de Azevedo, entre outros) e pelo jogo.
Camilo reconhecia que as estadias na Póvoa tinham produzido algumas melhoras apenas lhe faltavam as vistas e as pernas, prometendo os médicos “que tudo isto me hade vir do oceano”; sem grandes expectativas dizia que “por em quanto, Neptuno apenas me tem fornecido algumas tainhas”
A inconfundível escrita de Camilo revela-se não só nas grandes obras mas também naquilo que escreve para revistas literárias, jornais e até na correspondência
Veja-se o caso do.... burro ! objecto das cartas que hoje aqui trazemos.
Quando os médicos recomendaram passeios em montadas tranquilas, Camilo desabafou com o amigo Tomás Ribeiro: “Agora trato de sahir d'aqui para uma serra do Minho. Mandei comprar um jumento ao campo de Coimbra, e, logo q elle chegue, partimos os dous por esses montados fora. Sinto-me bom para Sancho do Quichote que fui há trinta anos.”
Camilo recorre a Adelino das Neves e Melo, seu amigo escritor de Coimbra, pedindo-lhe que arranjasse, para os passeios recomendados pelos médicos, um burro como só em Coimbra havia
Em 19/3/1886 escrevia:
“Meu Prezado amigo, Se for capaz de ler esta carta sem se rir está V.Exa. à prova do humorismo indígena. Os meus médicos, suspeitosos de que as minhas pernas vão paralisar mandam-me dar passeios a cavalo. Eu tenho um...mas já não me atrevo a montá-lo. Aconselham-me a equitação em burro, pacífico, sem manhas nem erotismos muito violentos. É impossível encontrar no Minho um burro em tais condições, porque alguns que ainda existem são abades.
Mandaram-me procurá-lo no campo de Coimbra, onde permanece a raça do burro espirituoso e meio académico da Mealhada e dos Fornos. Lido isto, V. Ex.ª encarrega um dos seus carreiros de me comprar um jumento, nas condições terapêuticas acima referidas – burro que não exceda 6 ou 7 libras. Apalavrado que esteja, envio a V. Ex.ª a quantia que me designar, e o burro vem para Famalicão tomar parte nas minhas contemplações bucólicas por estas montanhas. Pergunta-me agora V. Exa em que ponto da carta lhe cumpria rir-se? É na estouvisse de o ir distrair das suas leituras pedindo-lhe que me compre um burro.”
De V. Exa, velho amigo e obrigado, Camilo Castelo Branco”
O amigo imaginou que seria fácil arranjar o apetecido burro, mas tornou-se indispensável alguma demora para o obter, o que deu origem a nova epístola: “Vejo que é mais fácil encontrar aí e aqui uma dúzia de viscondes do que um burro regular. Talvez se desse a evolução darwinista. A gente vê passar o visconde e não vê o burro incluso. Requer-se o olho científico, experimental que V.Exa não tem nem eu. Muito lhe agradeço o resultado das suas pesqisas. Hoje deve V. receber um vale de 24{TEXTO_NOTICIA}0 reis para pagar o meu companheiro de excursões e travessias por estas serras. O burro queira V.Exa enviar-mo por via férrea. Não vejo melhor meio de transporte, nem deveremos esperar a navegação aérea, salvo se V. Ex.ª vir que ele, batendo as asas do génio, pode esvoaçar até aqui, como o negro melro da cantiga.
Terá a bondade de me avisar o dia em que o ilustre peregrino chega a Famalicão para as autoridades o cumprimentarem na gare.” Dei-lhe o incommodo de responder ao meu telegrama e não pude ir a Coimbra. Fui hontem ao Bom Jesus ver o Peito de Carvalho e regressei muito doente. Mal posso já sair de casa. Se V.me quizer ver, tem de vir aqui...”
O amigo Adelino das Neves e Melo julgava que o burro tinha as condições exigidas por Camilo, porém enganou-se como o demonstra nova missiva:
Eis que o burro chegou, em 20/4/1886 nova missiva: "Meu prezado Amigo e Ex.mo Sr.
Cá está o onagro. Não o posso ver porque estou de cama com reumatismo; mas ouço-o ornear valentemente. Desde Famalicão até aqui, não obstante ter passado mal a noite, revelou fúrias lascivas, dom-juanescas, a cada fêmea que encontrava. Logo que chegou, investiu para dois garranos que tenho. O diabo tem dentro dele o que quer que seja do Marquês de Valada. Parece mesmo um cristão! Meu filho Nuno veio dizer-me à cama que não consentia que eu o montasse (o burro) enquanto lhe durasse a crise erótica.
Assim farei para não ser vítima de paixões que me escangalharam a mim, sem ser de todo burro.
Remeto-lhe, meu prezado amigo, 2:250 rs. Vão inclusos nessa quantia fabulosa os telegramas apensos ao burro."
O burro foi devolvido a Coimbra, tendo ainda motivado um irónico oferecimento de Adelino das Neves e Melo: "Voltou para Coimbra o lúbrico solípede, e eu disse a Camilo que, à vista das manhas do onagro, só lhe poderia assegurar a mansidão de uma burra cega de um olho, que exercia na minha quinta o humilde mister de tirar água de um poço, e terminou a nossa correspondência a semelhante respeito com a última carta que se segue: "Meu prezado Amigo e Ex.mo Sr. Como suplemento às notas diplomáticas sobre o burro, salvo seja, vai esta como recibo das 5 libras, reis 220.
A posteridade, além de ver que fomos de boas contas, maravilhar-se-á vendo quais eram as preocupações de dois escritores assaz metafísicos. Se V. Ex.ª conservar esse paquiderme, e ele render o espírito em sua casa, peço-lhe que o embalsame e lhe ponha entre as orelhas a nossa correspondência. Ele fez gemer os arames do telégrafo, e prometia fazer-me gemer com as costelas fracturadas. Oxalá que a final V. Ex.ª não seja vítima desse burro e nunca lhe sacrifique a dedicada jumenta do olho único.
“De V. velho amigo. – 26-4-86 – Camilo”.
João Sousa Lima