Voz da Póvoa
 
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As Portas Giratórias do Poema

As Portas Giratórias do Poema

Cultura | 1 Março 2021

Hirondina Joshua nasceu em 1987, em Maputo, Moçambique. É licenciada em Direito e sem querer fazer justiça com as palavras abraça-as em poemas. Em 2016 publica o seu primeiro livro “Os ângulos da casa”, com prefácio de Mia Couto. A este primeiro grito adicionou a participação em várias antologias nacionais e estrangeiras. Tem também textos publicados em jornais e revistas de Moçambique, Angola, Brasil, Portugal e Galiza. Entre as publicações contam-se as revistas Raízes, Pazes, Por Dentro d’África, Ruído e Manifesto, CONTI outra, Sermos Galiza, Pessoa, e Literatura & Fechadura. Tem participado em inúmeros colóquios, tertúlias, debates literários, encontros de escritores, com destaque para o Correntes d’Escritas.

A Voz da Póvoa – A viagem tem pelo caminho as palavras da poesia?

Hirondina Joshua – A poesia não é uma opção é uma condição. Ela se manifesta em mim através da escrita, mas tem o olhar da pintura e de outras formas de arte. Até com aquilo que pode não se chamar de arte. A poesia não se encerra numa gaveta ou num livro, ela nunca está acabada. A exemplo disso “Os ângulos da casa” falam das minhas paisagens interiores, um reduto inacabado.

A.V.P. – Escrever obriga a viajar por muitas leituras?

H.J. – Cresci a descobrir mundos nos livros, mas não quer dizer que para se escrever um poema, seja preciso ler muito sobre o tema ou simplesmente ler muito. Conheço pessoas que leem bastante e não conseguem escrever um verso. A escrita permite-nos viajar, existir fora da quotidiana razão, sem precisar de sair. O fantástico é esta conjugação do real com o imaginário. Há em cada palavra uma desordem natural.

A.V.P. – O poema tende a provocar o leitor no sentido da reflexão?

E.M. – A leitura é o tempo supremo do ser humano. Antes de começarmos a escrever, lemos muito, nas pessoas, nos objectos, nas vivências, nos livros. Nesse sentido, a leitura é mais importante que a escrita porque ela existe mesmo sem os livros. Por isso, para escrever é preciso ter lido o que está à nossa volta. Depois, escrever é deixar uma marca geracional ou mesmo intemporal. Eu escrevo para me conhecer e reconhecer.

A.V.P. – Um poema multiplica-se em cada leitor?

H.J. – Esse é o lado interessante da escrita e que me faz gostar de literatura. O livro que acabo de ler é uma coisa para mim e será diferente para o outro. O texto vai acabar por entrar por outros caminhos da memória, do sentimento, da forma de pensar de cada um. Na verdade, a vida é um abrir e fechar de portas e o sentido que a palavra tem pode levar a caminhos bem diferentes. Fechar pode ser abrir um mundo diferente para lá da porta. São passos giratórios, nunca sabemos o que acontece com as nossas incertezas. Na verdade, a minha escrita é habitada por interrogações, por vivências. Como a literatura brota da vida, tem esse mistério, esse magnetismo.
 
A.V.P. – Pensa o livro ou os poemas vão brotando e aos poucos ele ganha corpo?

H.J. – Normalmente os poemas vão saindo e depois entram no livro. Tenho um caderno onde me desafio a escrever. Um dos poemas que faz parte da revista Correntes d’Escritas, de 2019, nasceu nesse caderno. Curiosamente, não tinha a intenção de o publicar. A ideia passava por um livro onde todos os poemas mantivessem conversas, com capítulos a separar. Ou seja, isso apareceu de uma forma pensada, ainda assim, são os poemas que vêm ter comigo. É um mundo que me vem dizer e não eu atrás desse mundo, atrás desse alimento.

A.V.P. – Da leitura dos poemas resultam palavras de mãos dadas, inseparáveis…

H.J. – Não consigo explicar. Sei que as palavras gostam umas das outras pelo sentido e pelo sentir. O poema acaba sempre interrogando-se pela necessidade da palavra a mais ou a menos, mas no processo criativo é o exacto que procuro. Existem aquelas palavras que nos surgem e não sabemos exactamente o seu significado, mas elas caiem no meu poema. O dicionário é um instrumento de trabalho, onde procuro o significado daquelas palavras, mas a sua essência foi já adquirida pelo poema. Não sei como isso acontece, mas por estranho que pareça era aquela palavra que o poema exigia.

A.V.P. – Como sentiu a primeira participação no Correntes d’Escritas?

H.J. – Gostei muito, conheci autores que li há muito tempo e admirava-os. Não imaginei que um dia os fosse encontrar num lugar onde me chamaram. Apesar de eu ser nova por aqui, mesmo em idade, eles não me trataram com distância. Há aqui muita partilha e a Póvoa de Varzim é também uma cidade bonita e acolhedora. A praia, a marginal, as ruas. Há imagens na cidade que me lembram Maputo. De certa forma me senti em casa. No dia que participei na mesa ‘o que vestem as palavras’ fiquei muito nervosa e nem consegui almoçar. Deixei-me ficar no quarto a meditar. Depois, quando cheguei ao Cine-Teatro Garrett e a sala estava cheia, curiosamente fiquei calma e li o meu texto, que preparei em Maputo, duas semanas antes, para um público leitor e interessado.

A.V.P. – Em Moçambique há uma certa crioulização da palavra?

H.J. – Há uma dialética de cruzamento de palavras que criam uma língua ou passam de uma para a outra. Depois, quem escreve também cria palavras novas, como o Mia Couto. A principal ferramenta na literatura é a linguagem, sem ela não promovemos a escrita. A simplicidade pode chegar à literatura mas sem banalidades. A construção de um poema ou de um texto precisa de uma literalidade capaz de transformar um olhar, um dado adquirido. Ou seja, somos todos interessantes quando estamos dentro de uma linguagem, mas fora dela somos qualquer coisa que passa por aí.

A.V.P. – Hoje, o livro em Moçambique é uma realidade mais procurada?

H.J. – Na cidade de Maputo há muitos alfarrabistas onde podemos sempre encontrar livros mais baratos e outros que não existem nas livrarias. Encontramos livros, os clássicos que transformam o leitor. Depois, temos também a internet que nos permite encontrar outras leituras e autores, que de outra forma não teríamos oportunidade. Eu baixo muitos livros pela internet, que estão disponíveis por acidente ou não. Entre os defeitos tem esta virtude de nos aproximar dos livros.

Por: José Peixoto
Fotografia: Rui Sousa

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