Voz da Póvoa
 
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AS CORES DA VIDA

AS CORES DA VIDA

Cultura | 20 Abril 2023

 

Sempre senti que este era o lugar. O mesmo povoado de gaivotas, essas aves de gritos livres como quem sabe soltar os limites do prazer. E nas asas abertas ao vento viajam sobre os tetos onde os passos se sentam depois do dia.

Volto as páginas do jornal no ritual de encontro entre a novidade e o olhar.
O café não chegou ainda. E o horizonte parece mais próximo, agora. Há umas nuvens apressadas buscando não sei o quê. Talvez queiram competir umas com as outras. Afinal, chegar é a certeza de ter conseguido atingir o motivo da partida. E como é doce a recompensa da vitória! Poderia até degustar-me com dois barquinhos poveiros, um coberto de chocolate e outro, de ovos-moles.

 Mas não. Emprestaste-me os teus lábios entreabertos e a tua mão pousou no joelho encostado ao teu. Somos de repente o instinto animal silencioso de quem consegue conter o desejo de posse. Mais tarde, quando o sol falar mais alto, dar-te-ei a pele desnudada pelo calor e salgada pelas ondas atrevidas do encantamento.
Sentes?

É a maré chamando as cores da vida. As mesmas que sussurram segredos guardados entre as vozes do silêncio e a força das palavras. Apetecem as tuas mãos. Quero-as assim, como redes de pesca por onde eu não possa escapar ao desejo oculto que só tu vês.
O jornal fechou-se.

As gaivotas são sábias como relógios do regresso. 

É tempo dos corpos escutarem a voz das bocas por entre as luzes das ruas. Avista-se ao longe um esboço de Lua, ténue ainda pelo leve peso das horas. 

À cintura tenho algas abraçando o princípio desse anoitecer. Ao mesmo tempo, há o imenso mar banhando-nos, cercando-nos como rochas serenas, resistindo ao impulso repetido das vagas.

 E partimos com as aves. Ou talvez não.

Talvez elas nunca tenham partido deste lugar.


  Benedita Stingl

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