Voz da Póvoa
 
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A Voz de Um Século

A Voz de Um Século

Cultura | 19 Setembro 2020

 

Texto: José Peixoto / Fotografia: José Carlos M

Nascemos fadados. Não, apenas abrimos os olhos para um mundo novo, surpreendente, depois de abandonarmos o saco amniótico da arquitectura redonda do ventre das mães. Amália Rodrigues, pela dúvida de uma data, ter nascido ofereceu-se em dois festejos, a 1 e a 23 de Julho. A sua avó dizia, que a neta nasceu no tempo das cerejas. A importância do nascer, só nos resta agradecer, pelo espanto da sua voz, encantando-se e cantando o outro.

A conferência proferida por Rui Vieira Nery, na quarta-feira, 9 de Setembro, que marcou, no Teatro Garrett, a abertura do 42º Festival Internacional de Música da Póvoa, fez regressar da memória “Amália Rodrigues: O Fado no Mundo e o Mundo no Fado”.

Para o musicólogo que, pela 22ª vez, abre as portas de um dos maiores acontecimentos culturais do país, “o Festival fica melhor servido com Amália Rodrigues, um marco da cultura portuguesa do século XX”, numa altura em que se celebra o Centenário do seu nascimento.

Uma infância difícil com muitas privações. Foi criada com uma avó, que já tinha criado 16 filhos. Fez apenas a 3ª classe, habitual nas raparigas de famílias de parcos recursos, abandonarem a escola para trabalhar. Amália Rodrigues conheceu muitos empregos de curta duração, onde foi bordadeira e vendeu laranjas no Cais de Alcântara, um tempo em que já se adivinhava o sumo da sua voz, pelo espanto e aplauso da avó e da vizinhança. “Ela vai fazendo uma espécie de tecido de memórias musicais que resultaram numa nova cultura. Nem foi o fado que afinou primeiro pela sua voz, mas as cantigas da Beira baixa que ouvia na família. Gostava muito de cinema e os filmes argentinos com os tangos do Carlos Gardel ou musicais espanhóis que gostava de ver e depois cantar”, para Rui Vieira Nery, a voz que nos habituamos a ouvir não cresceu enraizada no fado, mas tornou-se numa personalidade artística muito especial, como se comprovaria mais tarde.

Em 1938, Amália Rodrigues foi bater à porta de uma casa de fado lisboeta “o Retiro da Severa”. Cantou e encantou de tal forma que a notícia correu célere e as Casas de Fado esgotavam para a ouvir. Da sua timidez saiu: Que estranha forma de vida / Tem este meu coração / Vives de forma perdida /Quem lhe daria o condão? Que estranha forma de vida. Afinal, aquela voz também escrevia fado. Com o sucesso, o Teatro de Revista, em 1940, convida Amália Rodrigues que rapidamente, se torna uma estrela no Parque Mayer, onde encontra uma realidade musical diferente e conhece o compositor do designado ‘fado canção’, Frederico Valério.

O musicólogo, filho do grande guitarrista Raul Nery, que acompanhou Amália Rodrigues durante largos anos, recordou que o primeiro disco foi gravado em 1945, no Brasil, que só cinco anos mais tarde chegou a Portugal. Outro momento importante foi a estreia de Amália no cinema, em 1947, no filme “Capas Negras”.
 
A voz não pára de encantar e os seus concertos são difundidos numa importante rádio por todo o mundo. O álbum “Busto”, gravado em 1962, marca o início de uma colaboração com Alain Oulman e, Amália traduz em fado, poetas como David Mourão-Ferreira, José Régio ou Alexandre O’Neill. O imparável sucesso leva a artista a percorrer as melhores salas de todo o mundo.
Sem perder o encanto, a voz, com o 25 de Abril, quase se cala no país, por um mar de calúnias e de brutal ignorância que a ligavam ao velho regime. Amália passou a encantar lá fora até conseguir a reconciliação com o seu povo, em 1985, no Coliseu dos Recreios. Depois, “Com que voz / Chorarei meu triste fado? Que em tão dura paixão / Me sepultou” a diva vai descantando aos poucos até se despedir em 1994, novamente no Coliseu dos Recreios em Lisboa. Amália Rodrigues em 1999 despediu-se da vida mas deixou ficar a voz para a eternidade.
Como referiu Rui Vieira Nery, “toda a vida dela foi construída em torno da subida ao palco. Tudo o mais foi secundarizado”.

O dia seguinte ouviu-se na Igreja Matriz, o primeiro concerto do Festival, com a estreia da orquestra de câmara barroca Divino Sospiro. O encantamento da interpretação ‘Stabat Mater de Pergolesi’ foi partilhado pelas vozes do contratenor Andreas Scholl e da soprano Raquel Camarinha. No sábado, ouviu-se Debussy e Liszt no piano de Kirill Gerstein, num concerto que mereceu, no final, vários regressos ao palco do Garrett.

Texto: José Peixoto / Fotografia: José Carlos M

 

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