Voz da Póvoa
 
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A “Terra” expositiva que nos acolhe

A “Terra” expositiva que nos acolhe

Cultura | 19 Novembro 2020

O artista era aquele que tinha uma arte, uma profissão que o definia e diferenciava. O artista era o sapateiro, o carpinteiro, o calafate, o entalhador, o pedreiro, o trolha, o pintor, o picheleiro e tantas outras artes ancestrais que insistem e resistem ao envelhecer do mundo, ao entardecer da Terra.

Mas, há quem eleve as mãos ao sol da criação e, tal como o artista que repete a obra e a transforma entre o antigo e o moderno olhar, vai reconstruindo os elementos da razão que nos permite viver e ser Terra. Não há outra “Terra” que não seja esta que pode ver e partilhar, até 30 de Novembro na Biblioteca Municipal Rocha Peixoto.
Manuel Horta nasceu em 1970, em Almada. Depois da licenciatura, realizou o curso de Mestrado em Escultura, na Faculdade de Belas Artes da Universidade do Porto. Encontrei-o de máscara a montar uma exposição-instalação e deu-me vontade de lhe perguntar com que intenção se assalta uma biblioteca na Terra: “Tem a ver com ficção científica e com ciência. No fundo, é esta relação que se estabelece entre a ficção científica que precisa da ciência para dar o passo seguinte, até que chega ao ponto em que já não é ficção e passa a ser pura realidade. São essas imagens, quer de texto, quer mentais, que acabam por se tornar imagens do nosso meio, fazendo parte do nosso referencial cultural. É aí que entra a ‘Terra’, onde há uma necessidade de nos vermos a nós próprios. Nós pintamos cavernas, fazemos gravuras. A história da humanidade está cheia de representações de si própria perante o meio, mas só depois de ultrapassar a dificuldade técnica do lugar é que se pode representar a si e ao meio dos pontos de vista que não fazia antes. Ou seja, a vista aérea. Isso dá-nos uma visão global”.

O confronto com o natural ou a necessidade de transformar coabita em nós: “Cada vez temos menos terra, porque a nossa acção, embora sejamos matéria natural, não a podemos ver como algo externo ao planeta, daí as imagens de satélite, sondas, desde o Sputnik até hoje, que há uma necessidade de representação a partir do exterior. Acho que isso faz-nos sentir que estamos dentro da Terra, acentua mais essa presença. Não somos uma coisa que caiu aqui, como um meteorito, nem algo externo, somos uma espécie que se desenvolveu, se adaptou, cresceu, produziu, altera o planeta em função das suas necessidades, daí haver uma sobreposição sobre o natural. Sem entrar em mitos criacionistas, o conceito de paraíso que é transversal a todos os mitos criacionistas, faz parte da procriação humana. Tivemos que criar expositivos para nos afastarmos dessa condição para a certificar a nós mesmos. Ou seja, passar o atestado enquanto humanidade porque a nossa condição é pequena à escala cósmica.

A intervenção artística na Biblioteca Municipal é uma compilação de razões para definir o projecto ‘Terra’, com o pássaro como elemento observador: “Os satélites estão agarrados à Terra, geoestacionários, tal como os pássaros pousados. O homem não conseguiu voar, mas arranjou uma forma, um engenho. Só a nossa vista aérea, primeiro nos balões, agora nos aviões, nos permitiu outro observar. É a capacidade de ir mais longe e ultrapassarmo-nos a nós mesmos. É importante termos essa visão como artistas, como escritores. O Júlio Verne foi o primeiro a pôr o homem na órbita da Lua”.
 
Para Manuel Horta o homem pensa, a obra nasce, quando a imagina, a obra faz-se: “A partir do momento em que temos uma imagem mental, a obra nasce. A necessidade de nos referenciarmos e saber a nossa posição, vem de culturas ancestrais, que desenvolveram o conceito de observatório. Onde é que eu me sento para observar os astros, para registar o movimento, para ver a dinâmica das estações, qual o calendário natural. Só muito mais tarde, nos séculos, é que se desenvolveram as lentes que permitiram uma outra observação e até mudar o conceito. Galileu desenvolveu o telescópio e a partir daí temos uma noção completamente diferente do mundo e do universo em que vivemos. A nossa escala e a percepção de nós mesmos altera até chegarmos ao século XX, onde já temos telescópios avançados e em órbita. Toda essa produção de imagens manda-nos para uma ficção mais além, para outros mundos”.

A ideia ‘Terra’ é planetária: “Onde nós vivemos como planeta e a Terra em órbita no universo. Temos uma relação com a Terra que nos dá sustento, nos suporta quando a transformamos a nosso belo prazer, com desrespeito por outras espécies, por nós mesmos e é essa Terra que eu me refiro, porque é essa terra que na ficção sustenta a humanidade e na prática, também. É importante não esquecer a relação da ficção com a realidade e até que ponto essa ficção nos gera possibilidades de nos ultrapassarmos”.

O homem quando saiu da caverna não estava à espera de encontrar algo que já conhecia. Para Manuel Horta esta ideia de nos aprisionarmos não tem nada de positivo e o lado belo da não inauguração é o acontecer: “Não é possível estar com as pessoas, mas é possível fazer acontecer e perceber que nos cruzamos em sensibilidade. O fácil, fácil é não fazer nada. É agarrarmo-nos à Covid-19 e fazer máscaras. O município nesse aspecto tem sido exemplo porque percebeu que não se pode parar com a cultura. Sem arte e educação, onde fica a humanidade?”

Texto: José Peixoto Fotografia: Rui Sousa

  

 

 

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