Nos finais do século XIX o jogo, o pano verde, a roleta atraiam à Póvoa de Varzim homens de “todas as condições sociais, proprietários, funcionários públicos, capitalistas, professores, literatos, militares com os seus uniformes, sacerdotes com as suas coroas”. Alguns destes clérigos iam directamente das mesas de jogo para as respectivas freguesias celebrar as missas primeiras do dia.
Naqueles anos Camilo Castelo Branco passava temporadas na Póvoa onde tinha amigos para conviver, banhos para a saúde e jogo a que ele próprio não resistia, além de outros interesses do foro intimo.
Apesar de se confessar afeiçoado à Póvoa, comentava em carta ao amigo, poveiro de Averomar, Francisco Gomes de Amorim, que a única coisa que a “civilização” trouxe, “foi três roletas, e uma batota ou duas em cada prédio”.
Numa das estadias encontrava-se instalado no mesmo hotel um medíocre pintor espanhol viciado no jogo que perdeu na roleta todo o dinheiro que tinha. Sem vintém, havia já três semanas que não pagava a hospedagem. A impiedosa estalajadeira, habituada a estas situações, deu-lhe com grande brutalidade ordem de despejo. Camilo ouviu tudo e de pronto interveio: “ Eu trouxe do Porto cem mil reis que me mandaram dar a esse senhor e ainda não o tinha feito por esquecimento. Desempenho-me agora da minha missão”. O homem agradeceu lacrimoso, mas avisou o benfeitor que não possuía meios de lhe pagar. “Não tem dúvida” disse o grande romancista, “pinte-me o retrato do meu filho e do meu cão”.
Dias depois, o pintor entrega a Camilo, como pagamento da sua dívida, uma tela em que o filho e o cão eram horrivelmente pintados como figuras saídas de um pesadelo.
Um pagamento justo? Talvez, afinal, na Póvoa, até a arte podia ser uma roleta!
João Sousa Lima