Voz da Póvoa
 
...

A Noite da Consoada ainda Resiste

A Noite da Consoada ainda Resiste

Cultura | 24 Dezembro 2020

Nasceu em São Brás e ali cresceu, dois passos ao lado e abraçava Regufe. A escola apenas frequentou até à 3ª classe, porque eram precisos braços para ajudar os pais no campo. David José Leite conta com 90 anos feitos a 15 de Novembro, na companhia da sua amada Maria Gomes Ferreira.

Para o empresário, que começou na arte de carpinteiro aos 15 anos, o Natal foi sempre um dia grande, mesmo em tempo de miséria: “Nasci no seio de uma família pobre, mas desde miúdo que o Natal era um dia de festa. Em Regufe, o nascimento do menino Jesus era anunciado com foguetes. Andávamos no campo e os primeiros sinais de aleluia faziam-se estoirar no ar, a meio da tarde, antes da ceia. Isso acontecia um pouco por todas as freguesias. A noite caía e chegava a hora da mesa mais farta do ano, que nesse dia era no chão da cozinha. Estendia-se uma manta e os meus pais e os seus filhos, três rapazes e duas raparigas, faziam uma roda à volta de uma travessa e pratos de folheta. A miséria não dava para outras vaidades”.

David Leite recorda a ementa de Natal: “Era bacalhau cozido ao lume, num Pote, com batatas e couves. Nunca apareceu congro ou polvo na consoada. Aliás, só se comia bacalhau no Natal, nos outros dias era a sardinha da salga e, se houvesse, de resto era pão e caldo na tigela de folheta. Também se coziam umas castanhas. Para esse dia, a minha mãe cozia um pão de festa, que levava trigo na farinha. Tínhamos uma videira que se estendia pelo quintal e dava uma pipa de vinho. Mas a gente só bebia água-pé. Como não havia copos, bebia-se pela garrafa”.

Há tradições que nunca morrem, como os doces natalícios, mas outras ficaram pelo caminho da saudade: “A minha mãe fazia aletria e rabanadas de trigo seco. Uma iguaria que só se comia nesta época do ano. Agora, não falta doçaria. Recordo que no final da ceia, havia sempre uns pinhões para partir. Agora, são uma raridade, mas naquele tempo os miúdos iam pelas bouças de Argivai, colher as pinhas aos pinheiros mansos. Depois, colocávamos as pinhas dentro de uma panela grande, furada, ao lume, para que o calor as abrisse e facilitasse a saída dos pinhões. Prendas nunca houve, nem Pai Natal nenhum. Apenas, conheci o menino Jesus, que me ofereceu a saúde que ainda hoje lhe agradeço. Assistíamos às cerimónias, aos foguetes e era isso que nos alegrava. Na casa dos meus pais nunca houve presépio nem pinheiro. Nós, os mais pequenos, ficávamos encantados quando víamos um pinheiro, numa montra, enfeitado de algodão a fazer de neve. A noite terminava sempre com a missa do Galo, na igreja Matriz”.

O casamento trouxe um Natal diferente, recorda David Leite: “Melhorou um pouco porque a minha mulher estava habituada a uma casa com mais fartura. Em minha casa criavam-se os porcos e vendiam-se para comprar pão para comer, nunca matámos um porco. Na casa dos meus sogros criavam e matavam para comer. Eu vivi a minha infância, adolescência e juventude dentro da miséria. Cheguei a ir namorar com as botas emprestadas pelo meu pai. Já, a minha mulher não passou esses trabalhos e trouxe outros hábitos. Quando a família começou a crescer até às três meninas e um menino, enquanto pequenos, ainda os enganámos com umas prendas do menino Jesus, até perceberem que afinal era o pai e a mãe que davam. Podemos sempre acreditar que Jesus nos ajuda a poder oferecer. Quando a vida me começou a correr bem como empresário, já pendurava uns cheques, com o nome dos filhos e um determinado valor, no pinheiro que começou a decorar a sala da casa. Sentia uma alegria nas crianças, quando abriam as prendas, que eu nunca vivi. Depois, essa mesma alegria aconteceu com os meus netos”.

Com 90 anos feitos, o Natal continua a ser um dia grande. “Agora é de gente rica (risos). Refiro-me aos anos anteriores, porque este vai ser diferente. Junta-se a família toda à volta da mesa e como o Natal é sempre um dia especial, arranjamos sempre maneira de exagerar. Nunca, deixei de comer o bacalhau. Agora, também há polvo ou congro e sei lá o que mais. Todo o tipo de doçaria e o Bolo-Rei e vinhos à escolha ou bebidas espirituosas, como o vinho do Porto. Este ano, vamos ter que reunir com mil cuidados, longe daquilo que merecemos, mas tem que ser. Não podemos ter aquele abraço, aquele beijo. No entanto, não me posso queixar, porque fui sempre muito ajudado por Deus. Com certeza, sou um bom moço. Eu tenho a minha fé, penso que haverá alguém que intervém na nossa vida, o pai do tal menino que festejamos no Natal”, concluiu David Leite, o poeta carpinteiro.

Por: José Peixoto

partilhar Facebook
678/002-David-Leite.jpg
678/David-Leite.jpg
Banner Publicitário