Voz da Póvoa
 
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A Música Entre os Dedos e um Piano

A Música Entre os Dedos e um Piano

Cultura | 10 Setembro 2022

 

Três palmadinhas no rabo e acendeu o grito para a vida. O primeiro espanto, quando viu o instrumento que ouviu ainda no ventre de sua mãe Isolina. O piano não foi uma escolha, mas uma forma de se sentir inteiro.

Raúl da Costa nasceu na Póvoa de Varzim em 1993. Aos 7 anos iniciou os seus estudos musicais com Luís Amaro de Oliveira e Emília Coelho, na Escola de Música da Póvoa. Continuou os seus estudos na Academia de Música S. Pio X, em Vila do Conde, com Álvaro Teixeira Lopes. Aos 12 anos de idade estreou-se com orquestra na Casa da Música. Em 2011 rumou até Hanôver e ingressou na Hochschule für Musik, Theater und Medien, onde estudou com o professor e pedagogo Karl-Heinz Kämmerling, e ainda com Bernd Goetzke. Os estudos e os professores continuam a enriquecer e a engrandecer o muito premiado jovem pianista, que tem vindo a destacar-s em festivais internacionais de música e em palcos da Europa, Estados Unidos da América e da Ásia. Em 2018, assumiu o cargo de Director Artístico do Festival Internacional de Música da Póvoa de Varzim (FIMPV), que concluiu em Julho 44 anos de edições ininterruptas.

“De certa forma todas as edições que programei me surpreenderam. Há sempre novidades em cada edição, mas tenho que destacar o encerramento do Festival ao ar livre na Praça do Almada, um momento único que ficará na memória dos músicos e do público. O facto de começarmos a arriscar, a fazer encomendas de obras a compositores estrangeiros, no caso a Shai Maestro, uma obra de 41 minutos para 60 pessoas no palco, foi também uma agradável surpresa. Claro que tem um custo elevado, mas é assim que se ganha história, incentivando que nova música seja feita. São momentos que marcam o Festival”, recorda Raúl da Costa.

E acrescenta: “Tivemos muitos concertos diferentes. O público quando vê na programação alguma coisa a que não está habituado, o primeiro desejo que tem é o de procurar os concertos de cordas, uma orquestra barroca, entre outros. Mas, eu acredito que ao longo do tempo, as pessoas ganhem confiança em assistir a qualquer concerto. Há várias fatias do bolo do festival que não posso alterar, mas penso que o programa se complementa com ideias novas. Há escolhas essenciais, como orquestras, música de câmara, música barroca, os jovens músicos e o concurso de composição que é essencial. É óptimo ter artistas a fazerem a sua estreia em Portugal, na Póvoa de Varzim. Foi assim ao longo dos anos do Festival, que em alguns casos abriu-lhes muitas portas”. 
 
O peixe sente-se na água do FIMPV ao fim destes anos como director: “É uma parte da minha vida e de que me orgulho. Não há um dia que passe que não pense no festival. É um processo inspirador trabalhar na música. Quero estudar um certo número de horas por dia ao piano, mas tenho também o Festival. Tenho muitas ideias para a próxima edição, mas se vamos surpreender, só o público pode responder. Gosto que as pessoas se sintam confortáveis e falem do Festival. Espero voltar aos concertos ao ar livre. Gosto de ver o Festival a viver desta maneira”.

A novidade das bandas de música no Festival, segundo Raúl da Costa foi muito elogiada, mas “também fui muito criticado. Respeito os críticos, mas muitos músicos começaram pela Banda Musical da Póvoa de Varzim e estão a tocar em grandes orquestras, como a Diana Sampaio, o Gustavo Subida ou o Pedro Ribeiro, entre outros nomes por cá nascidos. Há também os novos elementos da banda que se querem dedicar à música ou a velha guarda que toca há muitos anos, que fazem as marchas nas procissões. Há também outros valores como a inclusão da música na sociedade. Não há nenhuma razão pela qual o público da música erudita se afaste”. 

Para o director e programador do Festival, juntar o projecto educativo que é a Banda Musical com o professor António Saiote, foi um dos grandes momentos do evento: “Estava muito emocionado no concerto porque ele próprio cresceu numa banda de música, para além de ter participado e feito vários projectos aqui na Póvoa. Não há um momento em que o António Saiote pegue no clarinete ou ouça alguém que não esteja com o ouvido extremamente apurado, explicando, se necessário, novas experimentações. É dos grandes professores de música de uma inspiração tremenda. Acho que juntar estes dois mundos foi uma mais-valia para o Festival. Se olharmos para o programa, foi apenas um concerto com uma orquestra de sopros e um clarinete, mas por trás há os ensaios, a reacção dos músicos, tudo o que aprenderam, que erraram, que evoluíram, abriram os ouvidos e tornaram a música mais viva. Penso que no final estavam todos muito orgulhosos com o trabalho que foi feito”.

Quando a Arte que nos Toca se Deixa de Ouvir 

A cultura russa foi muito penalizada com a guerra: “Um dos últimos concertos do Festival foi a orquestra XXI e começou com uma residência de cinco dias aqui na Póvoa, depois foram para Alcobaça, Marvão e CCB, e o programa escolhido por mim para esse concerto foi com o violinista ucraniano Valeriy Sokolov a tocar música russa. Falei com ele ainda antes da guerra. Se continua a ser algo político manter no programa um violinista ucraniano a tocar um concerto de Tchaikovsky, sou dos que defende a cultura, mas reconheço que de alguma maneira as pessoas são políticas. Se estudarmos bem a cultura, separá-la desta maneira é ser tirano na mesma. É trazer mais lenha para a fogueira, em vez de criar uma solução produtiva para todos”. 

Raúl da Costa lembra que neste momento “ninguém toca Dmitry Shostakovich, um dos maiores compositores russos do século XX. Ele que viu a sua música ser banida pelo regime de Estaline, ele e outros. Valery Gergiev, conhecido como o maior maestro russo em actividade, mas também pelas suas posições pró-Putin e pelo seu alinhamento com o actual regime russo, foi completamente afastado da direcção de orquestras no ocidente. Vamos ver quanto tempo isso dura. Como maestro fez muito pela cultura e ajudou muitos jovens músicos. Não aconteceu só com artistas russos a serem impedidos de tocar no Ocidente. Eu próprio tive concertos na Suíça com um quarteto de cordas russo, cancelado. O mesmo aconteceu em Março, com um concerto a solo na Aula Magna em Lisboa, que foi adiado para o próximo ano. Não era altura para ouvir música russa, curiosamente também ia tocar música ucraniana, mas por causa da guerra pouca gente estaria na disponibilidade de ouvir. Não era altura para apresentar estes programas. Há coisas absolutamente incompreensíveis”.

O pianista poveiro reconhece que é preciso encontrar uma solução, “se vamos cancelar a cultura hoje, que já deu muito que falar no passado, estaremos a retroceder civilizacionalmente. Com todas as questões que os pintores levantaram, escritores politicamente não aceites ou compositores, se fossemos a boicotar a obra deles, a maior parte dos museus, salas de espectáculo ou livrarias estariam às moscas. A guerra tem sempre dois lados, não é apenas o invasor que todos condenamos, mas a posição de incentivar esta guerra, na minha opinião, também não pode ser apoiada. Se não há uma ponte, pelo menos a nível cultural, quando todos sabemos que os dois lados têm uma cultura musical de excelência, é muito complicado entender a democracia, a liberdade”.

Interpretar é Sentir-se Dentro e Perceber a Intenção 

“Tento colocar-me no papel do compositor. Não é só interpretar o que lá está, mas perceber porque é que ele fez daquela maneira, porquê esta nota e não aquela, com esta dinâmica forte no piano. De certa forma, é como se fossemos o compositor no momento de escrever aquela obra, sabendo que todos nós tocamos e a interpretamos de forma diferente. É sempre muito mais do que aquilo que está lá escrito. A Maria João Pires diz que - é entre as notas que está a história toda. É preciso muita sensibilidade para chegar lá e encontrarmos a nossa leitura interpretativa”, ilustra Raúl da Costa.

Ler o mesmo livro duas ou três vezes em épocas diferentes pode levar-nos a descobrir coisas novas, a música em repetição também tem esse imaginário: “Há sempre a parte da performance, uma coisa é ler quando se está nos bastidores e outra coisa é chegar ao palco com adrenalina, permitindo abrir as portas da imaginação. Por isso, se toca tantas vezes Beethoven ou Sebastian Bach e se continua a ouvir com prazer e sentimento. Significa também que temos sempre algo para dizer ou acrescentar. Não é só a partitura que ali está, não é só o trabalho de bastidores, mas também o trabalho em público onde as portas se abrem para outros concertos. É o público que procuramos depois de muito estudo da obra que vamos interpretar”. 

Para o pianista, “qualquer pessoa que segue esta carreira e esteja envolvido em tocar certos compositores, tem que perceber que a sua vida vai ser sempre uma procura, uma interpretação das coisas belas, conseguido com muito trabalho, sem um limite estabelecido, sabendo que nunca vamos chegar lá e dizer - é isto que se toca para sempre. De alguma maneira, conseguimos atingir uma boa versão, no entanto, no dia seguinte pegas na partitura e não vai ser a mesma coisa. Não somos máquinas e há outros factores, o estudo, a inspiração, tudo aquilo que está por trás de uma partitura. O que interessa é estudar e conhecer, depois com o tempo chegam lá”.

Nesta viagem que partiu da meninice, houve um momento em que Raúl da Costa percebeu que a música o completava: “Penso que aos 13 anos houve um nó que se apertou de tal maneira que ao fazer isto se tornou impossível desapertá-lo. Deixei de ter dúvidas. Até aos 16 anos vivi um verdadeiro estudo à volta do piano. Tive a sorte e o luxo de uns pais que me acompanharam e me incentivaram a tocar piano, levaram-me a imensos concertos. Foi assim que aprendi a ser músico. Recordo que o Manuel Lopes que na altura dirigia a Biblioteca Municipal, abordava-me quando eu ia buscar CDs para ouvir em casa e uma das coisas que me dizia, era - para tocares piano vais ter que ouvir muito. A minha vida andou sempre à volta do piano”.

Ganhou vários prémios no seu percurso de pianista desde muito miúdo, mas admite que não foi preciso criar uma carapaça: “Cresci naturalmente, nunca fui um bicho-do-mato, sempre me dei bem com outros músicos. Os concursos são importantes para podermos tocar, apresentar o que sabemos, mas assisti a coisas aterradoras com professores a levarem os concursos de uma forma muito rigorosa e depois fazerem cenas pelos seus alunos não terem ganho isto ou aquilo. Essa foi a única carapaça que eu quis criar, uma protecção psicológica no caso de isso acontecer comigo. Tentei nunca me envolver demasiado com estas pessoas. Há muitos concursos e em várias idades, mas nunca vão mudar a nossa vida, o que muda é a capacidade de trabalho de cada um”.

Tocar em tantos palcos e em diferentes países também nunca foi um problema: “Sempre me senti em casa ao piano. Era e continua a ser irrelevante onde estou, em que país. No momento em que só tens o piano à frente e te concentras, se nos sentirmos verdadeiramente em casa é uma grande ajuda para que tudo funcione. Há coisas que correm melhor e outras menos bem. Mas, há um certo nível que tento sempre manter. Acabei por ir muito cedo para fora do país. Estou muito tranquilo em palco. Também toco fora da Europa, mas já estou numa fase em que me posso dar ao luxo de não ter que aceitar tudo e seleccionar aquilo que quero. A nível artístico também me dá outra liberdade. Não gosto muito da correria a nível artístico porque a qualidade e a dedicação é tudo aquilo que a arte precisa”.

Ser Completo é Saber Lidar com a Imperfeição
 
Há um crescendo de salas de espectáculo que não cumprem a sua função: As salas são cada vez melhores e bem sonorizadas. Em geral a actividade nos teatros é reduzida, não é o caso da Póvoa, mas há salas de teatro de muitas cidades que têm dois ou três eventos por mês e isso é muito pouco. Se temos tantos teatros porque é que finalmente não podemos ter outros tantos concertos. Fazem-se muitos de entrada gratuita para atrair público, por vezes quer dizer que os artistas não recebem quase nada ou nada mesmo. Ainda que todos os espectáculos não sejam um sucesso de bilheteira, é preciso viciar o público. Nunca houve tantos músicos e tantos teatros, mas é preciso que as salas tenham actividade. E estou só a falar desta arte”.

Raúl da Costa exemplifica o caso da Alemanha onde vive e estuda: “É um país onde qualquer cidade pequena tem uma ópera com actividade, uma orquestra e um coro, e toda a gente que lá trabalha tem contrato. A cidade pode ser muito pequena, no entanto tem uma sala para mais de mil pessoas, onde apresentam as suas óperas todos os meses, duas vezes por semana. Mas, há outras actividades na Ópera. Qualquer terra pequena tem um público tremendo. Em Berlim tem umas 7 ou 8 orquestras de topo e duas Óperas. É uma cidade com um nível cultural que me atrai, mas qualquer cidade pequena tem tanto para oferecer que te sentes bem em cada uma delas. As coisas ficam melhores quando o público percebe que é uma parte activa, ir a um concerto é fazer parte do concerto, não é só ser ouvinte. A pessoa que está a actuar precisa dos dois lados, há muitas razões para que seja importante que o público esteja lá”.
 
Há o braço e o abraço, uma simbiose entre o instrumento e o músico como se fosse um só corpo: “Nos bons casos sim. Sentir isso quando se está a tocar é diferente, mas não é por aí que vou. Quando estou a estudar procuro que esteja tudo bem, a parte técnica, que não exista nada na minha cabeça a nível musical e artístico que seja impossível. Sinto muito isso quando estou como espectador, quando estou como ouvinte noutros concertos. A última vez que ouvi e vi isso foi no Festival. Isso nota-se num bom instrumentista, nota-se quando a Maria João Pires toca piano ou quando Gidon Kremer toca violino, um jovem com 75 anos que aplaudimos este ano no FIMPV”.

Não se trata d’O Afinador de Pianos de Cristina Norton, mas de alguém que conhece todos os diálogos do instrumento: “Não é só afinar, é tratar da mecânica para que as ‘mudanças’ entrem como o pianista quer. O principal não é a afinação, mas a acção, a coisa mecânica, o bater do martelo na corda, a distância do martelo à corda, o teclado, se está nivelado ou não. Isso sim é bem mais pessoal entre os pianistas. Quando queres tocar a um certo nível, há detalhes a ter em conta”.

Em Raúl da Costa há um professor, um aluno, um pianista, um director de festival. A vida é uma permanente aprendizagem: “ “Penso que vou ser aluno para a vida. Sou uma pessoa muito feliz, muito grata, muito ligada à família. Trabalho para ser um músico o mais completo possível. Não é só a nível pianístico, mas também a nível auditivo, compreender a música e comunicar com ela através do Festival. A minha vida é música, é tocar piano. Se não tiver um piano à frente, não sinto tão fácil a vida. Quero ser um músico completo que possa fazer alguma coisa pelos outros”.

Por: José Peixoto

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