Voz da Póvoa
 
...

A minha glória é esta: OS DESENHOS DE RÉGIO

A minha glória é esta: OS DESENHOS DE RÉGIO

Cultura | 4 Julho 2022

 

A minha glória é esta:
Criar desumanidade!
Não acompanhar ninguém.
— Que eu vivo com o mesmo sem-vontade
Com que rasguei o ventre a minha Mãe
Não, não vou por aí! Só vou por onde
Me levam meus próprios passos…

Na sessão de encerramento da exposição "Os Desenhos de Régio", que teve lugar no dia 30 de Junho, na Fundação Gramaxo de Oliveira, teve lugar uma conferência proferida pela Senhora Prof. Doutora Isabel Cadete Novais.

O público presente foi também brindado com poemas de José Régio declamados pelo actor Júlio Cardoso declamou poemas de Régio.

 

OS DESENHOS DE RÉGIO

Durante o passado mês de junho decorreu na FUNDAÇÃO GRAMAXO DE OLIVEIRA, em Matosinhos, uma exposição consagrada à coleção de desenhos de José Régio, doada em testamento ao Centro de Estudos Regianos de Vila do Conde.
A tendência de desenhista, revelada desde muito cedo, durante a infância e pré-adolescência, partilhada com o seu irmão Júlio, companheiro próximo de brincadeiras e estudo, contribuiu certamente para o que mais tarde vieram a ser:
«Um dos nossos gostos comuns era, pois, desenhar ou até “pintar”. Tínhamos cada um a sua caixa de tintas, com bisnagas. Frequentemente trabalhávamos ao lado um do outro, ou estudávamos.
Meu irmão nunca mais deixou de pintar e desenhar: Além de vir a revelar-se, mais tarde, o poeta Saul Dias, tornou-se o artista plástico tão original que é hoje […]. Eu desviei-me das artes plásticas para a literatura e fiquei um desenhista “de domingo” que quase só desenha quando não pode escrever»
Confissão dum Homem Religioso
Apesar da aparente desvalorização que Régio atribui ao seu contributo nas artes plásticas, nos anos vividos em Coimbra, esse gosto acabou por adquirir dimensão, paralelamente à carreira literária. O desenho foi sendo desenvolvido como uma procura de expressão total, dentro de uma certa linha modernista expressionista de excessos, particularmente nos autógrafos produzidos nas décadas de 20 e de 30, muito conotados com a estética da revista presença, que preconizava a confluência das artes. Em algumas páginas, chegou mesmo a adquirir marcas de teatralidade resultantes da combinação das cores, agressividade dos traços, dimensão dos caracteres, pontuação excessiva e emotividade das expressões, numa interação redundante, com as palavras, de modo a explorar completa e profundamente os seus múltiplos sentidos, tanto ao nível estético como semiótico.
Mas o desenho em Régio não era apenas usado como complemento decorativo ou mera digressão mental. Na maioria das situações, surgia antes da produção escrita e funcionava como um elemento desencadeador e estimulante da mensagem verbal. Estando a imagem mais próxima da representação mental do imaginário, o desenho constitui a parte mais genuína da criação. Os traços e as cores alcançam maior expressividade do que a escrita constrangedora carregada de regras inibidoras à fluência do pensamento.
Era nesses momentos de transfiguração do real, em que as palavras tardavam a chegar, que Régio recorria ao desenho como linguagem plástica, para evidenciar momentos particularmente emotivos do seu próprio sentir ou para incutir maior dramatismo, densidade psicológica e dinamismo às perso-nagens das suas obras, em especial, as dramáticas. Além disso, graças ao vigor dos traços, cores e esgares, os esboços de figuras humanas, bem como os
guarda-roupas e cenários, valorizavam os momentos de criação febril, torrencial, graças à complementaridade e confluência de linguagens.
Na produção literária regiana, os desenhos foram sendo usados com funções distintas: umas vezes, como prolongamento do pensamento poético-dramático, outras, como economia da linguagem verbal, mas também e frequentemente, como meras subtilezas estéticas, devaneios circunvagantes, puras manifestações da sensibilidade do artista.

Muita da produção literária regiana, particularmente a poética, beneficia dessa comunhão de imagem, cor, dinâmica e espessura dos traços, dimensões dos caracteres, excessos de pontuação, dando origem a desdobramentos de falas e rostos, num diálogo contínuo do eu com os outros, ou melhor, do eu com as suas próprias máscaras, em jogos de dramatização e constante indagação, dos quais resulta uma intertextualidade e natural circularidade metalinguística perfeita.
Embora, aparentemente, nunca tenha atribuído grande valor artístico à sua criação plástica, Régio tinha consciências dos dons que possuía e evoluiu desenhando muito, umas vezes por uma necessidade intrínseca de complementaridade da expressão, conforme já foi referido, outras apenas como mero processo lúdico e também sempre que lhe solicitavam, presenteava familiares e amigos.
Há, no entanto, três fases particularmente importantes na produção pictórica de José Régio que convém salientar pelas suas características distintas:
- Os das décadas de vinte e trinta, coincidentes com o período da presença, altura em que se intensificam as preocupações plásticas de Régio. São quase todos executados a tinta da china (à pena e a pincel) e alguns a grafite ou lápis de cor, de cariz expressionista. Neles predomina a representação da figura humana (nús, retratos, prostitutas, bailarinos, “pierrots”, palhaços, figuras religiosas, cabeças de Cristo, flores) quase todos produtos complementares da obra literária, e ainda várias tentativas de auto-retrato;

- Os conjuntos de desenhos destinados a ilustrar edições posteriores de poesia como As Encruzilhadas de Deus e Poemas de Deus e do Diabo, executados a grafite e lápis de cor, em folhas de papel almaço. Dessas obras, apenas a 5ª edição dos Poemas, publicada em 1958, foi ilustrada com poemas do autor; - Por último, os desenhos executados durante os quatro meses de internamento no Sanatório Rainha Dona Amélia, em Lisboa, entre novembro/1966 e março/1967, altura em que quase não conseguia escrever. Desse período de doença, surgiram os desenhos mais conseguidos sob o ponto de vista técnico e plástico, executados a lápis de cor, em folhas de papel almaço, identificados com o símbolo (S) junto à rubrica. Eram eles retratos femininos, “Femmes Damnées”, cabeças de Cristo, “O poeta louco”, Rosto de Palhaço, Máscaras, entre muitos outros.
Recuperado da doença e regressado à sua terra natal, José Régio revelou consciência da qualidade artística desses desenhos, tendo manifestado perante o
amigo Flávio Gonçalves, vontade de os “guardar como um documento”, para futuro. Porém, alguns meses depois, o gosto de os oferecer aos amigos fez com que poucos ainda permanecessem entre os seus bens pessoais, alguns meses antes do seu falecimento, pelo que o Poeta retorquiu perante a surpresa do amigo: «Deixe lá! Afinal eu gosto, como o Camões que a vida me fique “por o mundo em pedaços repartida”!»

Isabel Cadete Novais
01/07/2023

partilhar Facebook
Banner Publicitário