Voz da Póvoa
 
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A Mestrinha

A Mestrinha

Cultura | 15 Outubro 2020

Há dias, naquilo que espero, não seja uma manifestação precoce de memória regressiva, vi-me transportado ao tempo dos meus cinco anos, entre 1957 e 1958.

À altura, as respeitadas senhoras Calheiros dirigiam, ali no Largo Caetano de Oliveira, uma “Mestrinha”, para quem não saiba as Mestrinhas, sem serem propriamente estabelecimentos de ensino, eram uma espécie de pré-escola para meninos da classe média entre os cinco e seis anos.

Frequentei, por um ano, aquela casa onde durante as tardes, as circunspectas irmãs Calheiros, enquanto bebericavam chá, procuravam pacientemente familiarizar-nos com as letras e a sua transformação em palavras quando combinadas da forma certa. O conhecimento dos números e a orientação das primeiras tentativas de escrita completavam o programa de aprendizagem.

Como a minha casa era relativamente distante do Largo Caetano de Oliveira as deslocações de ida e volta eram feitas na companhia de um adulto. Certo dia, em vez de aguardar que me fossem buscar, como estava estabelecido, esgueirei-me porta afora antecipando-me à hora de saída. Habituado a ter os movimentos vigiados no quintal de casa e a sair sempre acompanhado, estar só e por minha conta na rua, foi toda uma nova experiência de liberdade, verdadeira aventura para os meus cinco anos muito protegidos. As caminhadas de sábados à tarde com o meu pai, deram-me a conhecer as ruas da Póvoa, principalmente as que levavam à beira mar, por isso, sem vacilar atravessei a Avenida Mouzinho e cruzei o Passeio Alegre até à meia laranja. Parei a ver o ruidoso amontoado de futebolistas descalços que perseguiam uma mal amanhada bola de trapos, procurando fazê-la passar entre duas pedras promovidas a balizas. Segui para o cais onde raspei os joelhos a subir para o Paredão, esse posto de observação privilegiado, de onde se avistava tudo: o mar, a enseada, o areal repleto de gente, barcos, redes e cabazes de peixe. Mulheres em algazarra descarregavam e separavam o peixe logo ali apregoado. Fascinei-me com a entrada e saída dos barcos, das pequenas motoras e principalmente as lanchas a fazerem carreirinha à entrada e a içarem as imponentes velas ao saírem da barra. Mas, o que maior interesse e até uma ponta de inveja me despertou, foram as lanchas feitas de folheta pintada que, um bando de rapazes com as calças arregaçadas equilibrava à tona da água. Trocaria sem hesitar, o mais sofisticado dos meus brinquedos por uma delas.

A fome por ter faltado ao lanche na mestrinha e o sentimento de culpa por me ter escapulido levaram-me de regresso a casa em passo apressado, escolhendo as ruas sem me perder no caminho. Bati à porta, abriram “ai menino que anda toda a gente aflita à sua procura!”. Nada adiantou refugiar-me no galinheiro, não escapei a um puxão de orelhas sublinhado por um sermão acerca da perigosidade do meu acto e da aflição causada às senhoras Calheiros e à família, rematado pela promessa de mais grave punição “quando o pai chegar”. Felizmente a tolerância paterna evitou o agravamento do castigo, apenas exigiu que no dia seguinte apresentasse um pedido sincero de desculpas às senhoras Calheiros, assim foi feito.
 
Na caminhada do sábado seguinte, meu pai levou-me pela mão ao cais, ali sentados no paredão, partilhámos o entardecer saboreando uma merenda. Hoje, ao relembrar aquele sábado, sinto no seu rosto um silencioso sorriso cúmplice.

Texto: João Sousa Lima – Fotografia: Artur Pastor

 

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