Voz da Póvoa
 
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A Escrita Mais Corrente da Literatura é o Afecto

A Escrita Mais Corrente da Literatura é o Afecto

Cultura | 18 Fevereiro 2020

Vem de longe o tempo do primeiro baptismo, como se a fragilidade fosse de uma nascente, que até ser rio se vai transformando em corrente. Os primeiros passos podiam ter sido trémulos, mas foram convictos na sua intenção. Duas décadas se contaram em lugares como a Biblioteca Rocha Peixoto, o Auditório Municipal, o centro de congressos do Hotel Axis Vermar, até habitar o renovado Cine-Teatro Garrett e chegar à 21ª edição de um encontro de escritores a partilhar Correntes d’Escritas.

Para entender ou perceber o caminho percorrido, nada melhor que conversar com o caminhante. Luís Diamantino, acumulando, hoje, a vice-presidência da Câmara Municipal, era e continua a ser o vereador da Cultura, que recebeu em mãos o futuro: “Não hesitei, porque fazer um encontro literário na Póvoa de Varzim era uma coisa que me passava pela cabeça, desde o meu tempo de professor no Liceu Eça de Queiroz. Sempre quis fazer um evento deste género, com pessoas ligadas ao livro. As coisas aconteceram através de uma conversa com um amigo, que me foi dizendo que conhecia uma pessoa que tinha uma ligação muito forte com o Luís Sepúlveda. Digamos que tinha estimulado esta ideia e quando o Francisco Guedes me apresenta o projecto, aprovei de imediato e avançamos. A partir daí tudo se desenvolveu”.

A primeira relação foi com os livros, mas depois vieram os escritores: “Os livros oferecem-nos uma relação pura, de contacto directo com as personagens que nos fascinam e alimentam os sonhos. A obra vive por si. Quanto ao escritor, por vezes, há uma grande distância ou uma proximidade com a obra. Nestes anos todos cruzei conversas, às vezes frustrantes e outras fascinantes. É como tudo na vida, não há duas pessoas iguais. Podemos fazer a diferença porque somos únicos construtores das nossas escolhas, da nossa própria biblioteca”.

E acrescenta: “Um dia destes escrevi uma história onde revelo que durante muito tempo não tive a oportunidade de ter livros. Os meus avós eram analfabetos, o meu pai foi trabalhar com nove anos, antes de acabar a 4ª classe, concluída já depois dos 30 anos, pela necessidade de tirar a carta de condução. Portanto, a nossa casa não tinha livros, nem hábitos de leitura. Como gostava de ler, requisitava livros na biblioteca que na altura estava sediada no edifício da Câmara Municipal. Depois fiz-me sócio do Círculo de Leitores e, com as minhas economias, fui comprando um livro de vez em quando. Dessa forma fui construindo a minha biblioteca. Tal como não há duas pessoas iguais, também não há duas bibliotecas iguais. Uma biblioteca é a imagem do seu possuidor”.

Luís Diamantino reconhece que é um leitor inveterado, mas os seus hábitos de leitura não mudaram muito com o correr do tempo: “Sempre gostei dos clássicos, de Camilo de Castelo Branco, de Júlio Dinis, de Eça de Queiroz. Aliás, o primeiro livro que li, quase de um fôlego, foi o ‘Crime do Padre Amaro’, talvez porque trazia consigo aquele manto da censura. Claro que também li na minha juventude o Henry Miller, o Miguel Torga, a Agustina, que li com muita sagacidade, ou a Luísa Dacosta. Ainda hoje dou por mim a reler Jorge de Sena ou Machado de Assis. Há um estado brasileiro que proibiu a leitura de Machado de Assis, mas não há melhor forma de se promover um livro ou um escritor que proibir a sua leitura. O proibido é apetecido”.

Reinventar com a Catalunha Sem Sair da Corrente

As Correntes d’Escritas acordaram o sonho e apresentaram-se com autores, abrindo as portas a outras linguagens literárias, em Matosinhos, Penafiel, Óbidos e tantos outros lugares e cidades. Mesmo sem sair da primeira ideia de corrente, não deixou nunca de se reinventar. Para Luís Diamantino, quanto mais eventos houver melhor: “Os outros também nos servem de aprendizagem. Esta realidade cultural, que se vai semeando pelo país, vai fazendo com que as raízes culturais se vão espalhando e encontrando. Há pontos em comum onde todos lucram, os organizadores, os escritores, os editores, os livreiros. Há aqui uma ideia de partilha, de conhecimento, de entreajuda. Ninguém quer o mal do outro, somos todos amigos do livro, da promoção da leitura. Quanto mais fizermos, mais gente conseguimos agarrar. Estamos a criar futuros leitores e futuros escritores. Por isso, toda esta ligação que estamos a fomentar com Barcelona, com Óbidos, com Matosinhos, tem a intenção única de disfrutar conhecimento, agradecer e continuar a fazer história”.

Não é a primeira vez que a Catalunha está representada por escritores, mas desta vez a intenção chegou mais longe: “Tínhamos já uma relação muito forte com a Galiza. Já estivemos em Santiago de Compostela, sendo que o mesmo aconteceu ao contrário. Estamos também a preparar uma geminação com La Guardia, onde há uma cultura e uma tradição marítima que nos une. Ainda mais recentemente unimo-nos pela literatura com a Catalunha.

Sabendo que Barcelona é uma Cidade Criativa da Literatura, tal como Granada, fizemos os contactos necessários e fomos muito bem recebidos. De tal forma que o Instituto Ramon Llull tem tido um relacionamento muito forte com a Câmara da Póvoa e vai estar nas Correntes d’Escritas a promover a língua e os escritores catalães. São agora nossos parceiros, como também é o Instituto Cervantes. Quanto mais parceiros tivermos, maior é a dimensão deste evento”.

As línguas de expressão ibérica têm todas lugar no evento literário. “O Castelhano, o Catalão, o Galego, o Português e quem sabe um dia o Mirandês. A língua é o nosso maior património e vamos continuar a defendê-lo. Entre outras, haverá uma mesa com escritores catalães e uma outra ligada às cidades criativas, onde estará Barcelona e Óbidos. Mas não há grande distinção, porque o trabalho feito nas mesas é uno”, revela o vereador da Cultura.

E acrescenta: “É um caminho que nos pode ajudar a ser, no futuro, uma cidade criativa a nível cultural. Temos um projecto e um programa a cumprir. Já este ano vamos ter residências artísticas com o Instituto Politécnico do Porto, na área da multimédia e design, com filmes, documentários e exposições. Vamos tentar, cada vez mais, levar momentos culturais às várias freguesias do concelho.

Estamos a trabalhar com São Pedro de Rates e este ano também com Navais. E levaremos a outras freguesias em anos vindouros. Como é sabido, levamos escritores a todas as escolas. Temos também uma programação cultural ligada à música. É a arte no seu todo que pretendemos.

Este é um trabalho que estamos a fazer, passo a passo, de forma a cimentar cada realização e a conseguir os nossos objectivos. Tentamos de alguma forma chegar a todo o concelho”.

A Revista das Correntes e as Iniciativas em Revista

Em cada ano a revista literária Correntes d’Escritas publica textos e poemas inéditos dos autores presentes, mas há sempre um nome grande em destaque: “Desta vez recaiu em Hélia Correia. Para além de ser um nome de referência, que há muitos anos nos visita, já venceu o prémio literário Casino da Póvoa. Temos também um nome grande na conferência de abertura, como nos acostumamos a ter todos os anos. Desta vez a palavra será na voz de Álvaro Siza Vieira, que nos vai falar de arquitectura e arte, e ninguém melhor que ele para o fazer. Para mim, arquitectura é arte, embora para o Tribunal de Contas não seja. Destaco também o facto de voltarmos a ter a formação para os professores e bibliotecários, particularmente. Temos mais de uma centena de inscritos, em cursos de formação creditados. Como habitualmente, vamos ter exposições e lançamentos de livros, mesmo edições municipais de vários artistas”.

Para Luís Diamantino, repetir as residências artísticas com escritores é uma forma de dar protagonismo à cidade: “Colocar os escritores a escrever sobre a Póvoa de Varzim é importante. Não há melhor maneira de divulgar uma terra que através dos livros. Temos aqui os escritores e as residências artísticas são uma oportunidade para a criação de uma vivência poveira. Vamos ter também o cinema a falar de nós. O documentário ‘O Sentido da Vida’, onde o tema central é a Paramiloidose, é tratado de uma forma muito forte e real. Com este documentário pretende-se, acima de tudo, sensibilizar as pessoas para o sentido da vida”.

A cultura faz-se de movimentos e criação. Por isso, para o vice-presidente da Câmara Municipal e vereador da Cultura, a ‘política’ não tem lugar nas Correntes: “Quando estabelecemos esta parceria com a Catalunha algumas interrogações se levantaram, talvez pelas notícias que nos chegam. Penso que a força das Correntes é serem habitadas por um espaço de liberdade, desde o primeiro momento. As pessoas aqui são livres e responsáveis pelo que dizem ou pelo que fazem. As pessoas têm que ter toda a liberdade de expressão para fazerem acontecer cultura. Essa é a grande força das Correntes d’Escritas. Durante o evento já se cantou a Grândola Vila Morena, já se fizeram discursos políticos, já se assinaram manifestos. A liberdade mora aqui. Quando posso assistir, sou mais um elemento do público. Aprendemos muito mais a ouvir do que a falar.

O que não é necessário não vale a pena ser dito. As cores partidárias são aqui uma mistura de palavras capazes de nos enobrecer”.

Outra força que o Correntes d’Escritas angariou foram os prémios literários, que para Luís Diamantino abriram janelas de oportunidades para todas as idades e criadores: “Temos prémios literários desde as escolas do primeiro ciclo, passando por um prémio a jovens adolescentes ou para uma estória bem contada passada na Póvoa de Varzim, atribuído pela Fundação Luís Rainha, ao consagrado prémio Casino da Póvoa. Desta forma abrimos e fechamos o ciclo de prémios literários. Nas Correntes, temos escritores de todas as idades. Este ano temos cerca de 30 escritores que estão cá pela primeira vez. Esta renovação é necessária. Nos primeiros anos tivemos aqui jovens escritores que hoje têm uma carreira literária, como Ondjaki. Temos feito a nossa parte e é preciso continuar. Um dia há-de se fazer a história deste evento”.

A Escrita Também Revela um Homem Corrente

A escrita é uma aprendizagem que vem de longe, de um tempo menino, onde começamos a abrir as portas à surpresa do mundo. Crescemos feitos de interrogações e de jovens incertezas. O que queremos ser. Segundo Luís Diamantino, a vida encarrega-se de nos conduzir, nem sempre pelo primeiro desejo: “Quando andava a estudar no Liceu era para Direito. Era muito comunicativo e fui eleito representante dos alunos do Liceu Nacional da Póvoa de Varzim, no Conselho Directivo. Eu gostava de fazer esse contacto com as pessoas e ainda hoje é isso que me move.

A certa altura contactei mais de perto com a análise literária, graças à Dra. Conceição Nogueira, que foi minha professora, e mudei rapidamente para a docência. Era ali que estava o caminho que devia seguir. Desta vontade me tornei professor, um caminho que nos ajuda a chegar a qualquer arte. Não é por acaso que na pedra do Eça de Queiroz tem lá escrito ‘A arte é tudo - tudo o resto é nada’. Só um livro é capaz de fazer a eternidade de um povo”.

Sabemos que liberta um conto, um poema, um prefácio. Só não sabemos onde mora o livro: “A mulher que reparte o amor comigo é uma fã daquilo que escrevo, tal como a minha filha, mas elas têm a doença de pertencer aos meus dias em família. Eu gosto muito de ler e escrever, mas infelizmente tenho pouco tempo para me dedicar às duas coisas. Eu escrevo crónicas e textos curtos, porque é o tempo que eu tenho, e por vezes preciso escrever hoje para publicar amanhã e sai de um fôlego. Escrevo muitos prefácios, que não deixam de me arrastar para a leitura. Às vezes escrevo e parece que estou a imitar o que leio”, conta Luís Diamantino.

E revela: “Estou de facto a escrever um livro, que entra pela vida do emigrante. É inspirado na história do meu pai, que emigrou para o Brasil muito novo. Depois, toda a consequência desta vida de quem sai dos seus, da sua terra para o desconhecido. É um pouco o que se passou com Ferreira de Castro, com Gomes de Amorim. O meu pai contava-me estórias que são as estórias do Ferreira de Castro e do Gomes de Amorim, que eu li. Em miúdo cheguei a pensar que o meu pai inventava estórias para mim. Mas não, a realidade às vezes é mais forte que a ficção. O meu pai viveu momentos muito complicados enquanto jovem no Brasil, sozinho a tentar fugir da miséria. Dou muito valor aos emigrantes, às pessoas que passaram muitas dificuldades na vida, para tentar melhorá-la. Os emigrantes provam-nos muitas vezes que não há impossíveis”.

É deste desafio que as Correntes d’Escritas se alimentam em cada ano, conclui Luís Diamantino: “Depois de lançado o primeiro desafio, hoje temos mais de duas dezenas de comerciantes a responderem afirmativamente e a transformarem por uns dias a sua loja numa livraria. As pessoas estão cada vez mais interessadas. A cidade já demonstrou que este evento lhes pertence, que passou do desconhecido ao assumido. É por isso que o Correntes d’Escritas se desenvolve no gabinete de projectos culturais, mas durante o evento são muitos os funcionários a trabalhar e a dar apoio, muito por amor ao que se faz.

Sem dúvida que os contactos com os livreiros, os editores, os escritores, são essenciais para que tudo isto aconteça. Digo muitas vezes que saindo o vereador da Cultura ou os coordenadores, as Correntes continuam. Ninguém é insubstituível. A estrada está feita e o evento vive por si.

Esta é a melhor prova de que o Correntes d’Escritas ganhou uma consciência própria e é por todos os intervenientes e para todos um êxito cultural”.

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